um filme particular

Todo dia quando atravesso o bosque ao sair do trabalho, imagino uma câmera me seguindo e uma voz narrando meu pensamento. Imagino apenas o começo de uma narrativa que terá um final feliz. Me imagino a personagem tristonha cuja história sofrerá uma reviravolta. Ela dará a volta por cima depois de resolver diversos dilemas e terminará muito melhor do que começou, será literalmente a protagonista do seu próprio filme. E isso acontece todos os dias. Não só quando volto do jornal, pensando o que farei para o jantar. Acontece quando estou prestes a levantar da cama, ainda preguiçosa, sem coragem. Nesse momento me imagino numa cena em que a simples atitude de jogar as cobertas de lado e entrar no chuveiro dá início a uma série de eventos transformadores. E no banho, sempre escrevo em pensamento o texto mais interessante. Elaboro os discursos mais apaixonados. Sei tudo o que preciso dizer. Mas é só me secar com a toalha para as ideias também secarem. E quando me visto, penso: que personagem quero ser hoje? E assim vai. Desde a escolha dos brincos, combinando com o anel e o relógio. Os sapatos etc. Até a hora de bater o cartão. Nesse intervalo, descendo as escadas do prédio numa espécie de exercício diário, atravessando o bosque com a cabeça baixa, procurando espaço para pisar entre os cocos de pomba, imagino como será o enredo da tarde e lembro que dali a poucas horas atravessarei aquela mesma calçada, fugindo do ataque noturno das amargosas, pensando na janta e em como deveria ir dormir sem comer. A narradora, que tem a minha voz, inventa histórias engraçadas com pessoas que cruzam meu caminho durante o dia. Constrói diálogos perfeitos. Nessas horas eu digo exatamente o que queria dizer para minha mãe mas nunca disse. Eu assumo que estou chateada com meu pai e debato isso com ele em pensamento. Penso na frase exata que direi para a chefe para justificar um erro. Ah como o pensamento é divertido. Ah como a minha imaginação voa e filma meu documentário particular diário do momento em que abro os olhos pela primeira vez no dia até o segundo em que eles já não conseguem mais permanecer abertos no início da madrugada. Dizem que viver na própria imaginação não é exatamente viver e sim se esconder dentro de si mesmo, fugir do perigo que é a vida. Eu até acho que viver é melhor mesmo, mas tem horas que a imagem perfeita que criamos na mente, nosso filme particular, do qual somos escritor, diretor, cinegrafista e editor de som, é a única coisa boa que resta de um dia bem vivido. Por bem vivido quero dizer aquele em que conseguimos cumprir nossas responsabilidades sem doer. Rotina, melhor dizendo. Porque viver de verdade não é fazer coisas extraordinárias todos os dias. É se surpreender com o conhecido. Passar roupa de roupão em frente à tv. Almoçar uma comida simples mas deliciosa. Tomar aquele café em companhia do amigo à tarde. Realizar bem um trabalho. Chegar em casa e se esparramar no sofá para ver mais um capítulo da novela antes do sono chegar. E enquanto realizar tudo isso, guardar para si as fantasias. Rir de si mesmo em pensamento. Imaginar-se longe dali, nem que por alguns segundos. Só para apimentar a realidade. Pois dela, não dá para fugir. Ainda que desejemos o sonho, quando vivido, ele se torna real, palpável e não é mais sonho e sim vida.

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