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Mostrando postagens de fevereiro, 2020

querido diário

Eu queria ter coragem de te dizer algumas verdades. Mas seriam as minhas verdades não as suas. Não faria diferença para você. Tanto quanto o que você me diz, que sempre muda meu jeito de me ver e de ver o mundo. Eu sempre aprendo. Mas sinto que posso ensinar também, se você deixar. Então eu durmo até tarde para não precisar encarar a realidade de uma rotina focada no trabalho. Faz bem porque eu descanso o corpo, mas a mente segue trabalhando. E resolvendo no sonho o que não tem coragem de resolver na realidade. Ou talvez não seja falta de coragem, seja falta de vontade de encarar que já deu. Porque o conforto grita mais alto que a autoestima nesse caso. Para escapar, decidi ver a nova série adolescente e pensei: que bela metáfora para explicar a ansiedade que corroe alguns desde a juventude. E acompanha outros pelo resto dos dias. Explodir tudo quando não aguentamos poderia ser uma saída para aguentar o barulho interno. Mas dai a alternativa proposta pela personagem adulta é escrever

sobre um carnaval

Você precisa de psicólogo. Parece que sua terapia não está funcionando. Se você tivesse superado, você não estaria falando nisso ainda. Já aconteceu há tanto tempo, mas parece que você não esqueceu, insiste em falar nisso. A vida é uma merda. A vida é difícil. Você tem que ser sua própria medida, um fim em si mesmo. Deixa pra lá. Vire a página. Cada luta é individual. No fundo, ninguém quer mesmo saber como você está. Têm uma ideia já feita do que acham que você será para a vida toda com base no que foi até agora e imaginam que você nunca vai mudar de verdade. Talvez a gente nunca mude mesmo. E passe a vida lamentando pelo que foi. Passe a vida procurando culpados. Passe a vida gritando, mesmo quando quer só entender como chegou até aqui. Ninguém nunca poderá entrar debaixo da pele do outro para sentir o que o outro sente. Na verdade, ninguém muda o outro. E a beleza está em aprender um pouco mais todo dia, em ser melhor hoje porque o segundo atrás já é passado. Faça terapia. Fale. B

drops

Uma carta. Mas de que adianta se a resposta veio antes. De que adianta dizer repetidas vezes. Será sempre não. Então soca a porta do freezer que não fecha direito. Mata a trilha de formigas que insistem em passear pelo armário da cozinha, sem rumo. Toma uma taça de vinho. Come três pedaços de pizza de abobrinha, sua favorita. Liga na novela bobinha e tenta desligar. Será sempre não. Sempre. Não. Ele nem titubeou e ela, emudeceu. Tá tudo bem? O outro perguntou. Sim, claro. Só estou cansada, ela respondeu, querendo partir. Foram dois litros de chope no almoço. Um calor danado de meio de verão. Aquele bafo. Ela só pensava em ir pra casa. Se esconder no quarto escuro. Fechar a janela, a cortina, ligar o ventilador e cair no sono. Pra esquecer. Ele trabalha até tarde, então ela espera ele ligar. Todo dia. Enquanto isso, lê. A última história contava sobre casais apaixonados que se casaram durante a segunda grande guerra. Elas, australianas. Eles, ingleses. E como o governo da r

cupcake de cenoura e brigadeiro

Eu cruzo a avenida todo dia. Manhãzinha e tardezinha. Eu vejo os ônibus descarregarem trabalhadores enquanto eu mesma me levo pro serviço. Eu vejo gente apressada, olhando pro celular. Gente comprando o pão francês pra patroa. Eu vejo gente correndo em volta do lago pra ficar em forma. Eu vejo gente tão tranquila que até tira o sapato no ponto, enquanto a condução não chega. Tem dias que vejo ele descendo a avenida. Em outros, ele está subindo.  E eu vejo a placa de amor à cidade à esquerda e os rapazes praticando pólo aquático no lago à direita. Meu carro sempre engasga nesse trecho de subida. Achei que era um problema meu, mas outro dia o amigo contou que o carro dele também engasga por ali. Ou a pista precisa de reparos ou precisamos trocar de carro. Pensando bem, acho válidas as duas hipóteses. Eu estava cansada e fui pra casa tirar um cochilo no meio da tarde. Sim, um cochilo. Sim, no meio da tarde. Sim, porque tem alguém no meu lugar no serviço. Alguém que eu contratei e a quem

fluxo de consciência

Um a lembrança do aplicativo que conecta o mundo mostrou que já faz sete anos que a menininha espevitada dançou a música do momento naquele casamento. Ela de vestidinho colorido, ao lado do menininho de terno. O show era dele, mas ela roubou a atenção. Como faz até hoje. A lembrança levou para o presente: os noivos hoje são pais. Talvez hoje seus filhos seriam flagrados dançando num casamento qualquer e daqui sete anos os pais estariam sorrindo com eles. Aquela menininha já tem pernas compridas e usa brincos grandes e blusas que mostram a barriga. Que tapa na cara. O tempo é mesmo implacável. A lembrança foi um post e ainda bem pelo post porque senão o grupo não pararia para recordar aquele dia especial numa manhã qualquer, sete anos depois. Não teríamos sorrisos singelos logo cedo. Quem não compartilha felicidade não é feliz de verdade? Ela sonha e posta. Ela planeja trilhas sonoras e posta. Ela supera limites e posta. Ela se vê num ângulo bonito e posta. Ele vê um jogo, um filme, fr

imagens

Um aperto. De mãos. No estômago. No peito. No pão, pra ver se está quentinho. E uma colherada farta de requeijão pra deixar mais gostoso. Um sorriso largo e lindo. E gentil. Desde o primeiro dia. Um, dois, quatro pães de queijo pra viagem. Uma conversinha fiada pra criar intimidade. E você descobre que os amigos são, na verdade, irmãos. E que só têm a hora do almoço pra jogar. E que um deles carrega fotos do filho pequeno e gosta de mostrar pra todo mundo. Meu sobrinho lindo, ele diz. Pede que ele te mostra, completa. Uma, duas, três fotos. De uma árvore no meio da Amazônia. Da igreja mais linda de Barcelona. De café. E a sala nova vai tomando cor. Com o olhar de amigos que um dia dividiram a rotina e hoje se redescobrem. Como você se redescobriu. Foto antiga, em preto e branco, de um casamento, encontrada no calçadão, durante um passeio com a cachorrinha. A benção do casal pelo padre eternizada num clique. Um viral nas redes e o dono apareceu. Um dia depois. O noivo da foto recuper

sobre Lizzie e Darcy

Divaguei sobre desperdício e inspirei uma pessoa a escrever sobre os invisíveis do cotidiano. E essa pessoa me levou a pensar sobre eles e sobre o meu papel atrás do balcão. Também me sinto invisível às vezes. Quando fazem o pedido sem me dizer bom dia ou me pagam e saem sem agradecer. Às vezes eu agradeço e recebo um vazio como resposta. Em outros momentos me sinto exposta até demais. Quando me perguntam sobre a minha vida pessoal ou me explicam como eu deveria tocar meu café. Existe uma linha que divide a superexposição da autopreservação? É possível equilibrar-se?  Ou é melhor seguir invisível para não se machucar? Às vezes dói não ser visto. Muitas vezes dói ser cobiçado como um objeto a se possuir. Extrapolei a discussão da invisibilidade para pensar na condição da mulher. Estamos sempre com medo. A todo momento ouvindo o quanto somos frágeis, quando na verdade não somos: é apenas o que os donos do poder querem que pensemos para seguir nos dominando. Existe uma condição feminina