fluxo de consciência
Uma lembrança do aplicativo que conecta o mundo
mostrou que já faz sete anos que a menininha espevitada dançou a música do
momento naquele casamento. Ela de vestidinho colorido, ao lado do menininho de
terno. O show era dele, mas ela roubou a atenção. Como faz até hoje. A lembrança
levou para o presente: os noivos hoje são pais. Talvez hoje seus filhos seriam
flagrados dançando num casamento qualquer e daqui sete anos os pais estariam
sorrindo com eles. Aquela menininha já tem pernas compridas e usa brincos
grandes e blusas que mostram a barriga. Que tapa na cara. O tempo é mesmo implacável.
A lembrança foi um post e ainda bem pelo post porque senão o grupo não pararia
para recordar aquele dia especial numa manhã qualquer, sete anos depois. Não teríamos
sorrisos singelos logo cedo. Quem não compartilha felicidade não é feliz de
verdade? Ela sonha e posta. Ela planeja trilhas sonoras e posta. Ela supera
limites e posta. Ela se vê num ângulo bonito e posta. Ele vê um jogo, um filme,
frita coxinhas terça-feira à tarde e posta. Ele faz caminhadas diárias pela cidade, aproveita para registrar a evolução daquela obra inacabável e posta. Ele faz rimas e posta. E segue de volta. Ele redescobre arquivos, desenha
linhas desconexas e as colore despretensiosamente e posta. Ela faz fotos de detalhes de paisagens que vê pelo caminho e posta. Tem quem só posta trabalho e quem nunca posta nada, nunca. Ela tira foto da
pizza deliciosamente linda ao lado do vinho rose e posta. Daí vê um post da atriz e marca a mãe e as amigas
num texto importante, encontrado no meio de tanta gente que usa o tal
aplicativo de fotos, onde todo mundo posta tudo o tempo todo. Mas ela diz eu te
amo também, pelo telefone, em uma ligação difícil. Ela retorna a ligação ao
invés de mandar mensagem. Isso é bonito demais, a outra pensa, enquanto vai pro
quarto ouvir aquela moça meio maluca que ela segue no aplicativo de vídeos, a
quem escuta toda noite antes de dormir. Ela descobriu que dorme nos primeiros
segundos do vídeo porque a moça fala numa frequência propícia a desacelerar. É
um truque. E ela escuta pelo menos umas três vezes a mesma mensagem antes de
aprender o conteúdo final, que sempre ensina alguma coisa boa pro dia seguinte.
Ela não reza mais. Ela dorme. E sonha maluquices com pessoas que estão longe, não
tanto fisicamente mas espiritualmente. Mas quem controla o sonho? Naquela noite
ela comeu nhoque com ragu de ossobuco só pra aplacar a pancada que levou no
estômago depois de ver o filme premiado. Ela ainda chegou em casa e tomou
sorvete com calda de chocolate pra ver se a sensação de deslumbramento passava,
mas não passou. Ela conversou um pouco antes de dormir e caiu no sono logo porque
já era tarde e ela teria apenas seis horinhas de olhos fechados. Ela acordou
não querendo acordar. E vestiu uma roupa qualquer florida e pintou os olhos de
um azul esverdeado - ou verde azulado - para
ver se o desconforto sumia. Não sumiu. Ela fez tudo igual e ainda assim aquela
manhã não era igual à de ontem. Quando ela voltou, ele estava lá, andando de um
lado pro outro, olhando pro lado dela de vez em quando. Ele é estranho, ela
pensa. Mas tem olhos convidativos. É muita informação, ela sentiu. Textos,
imagens, falas, expressões, pessoas. Uma, em especial, que chegou por acaso,
quando ela mais precisava, é tão diferente dela e ao mesmo tempo igual. Acha
que já sabe tudo, mas está só começando. Só começando e mal sabe o que a
espera. A outra consegue vislumbrar algumas verdades que só a experiência mostra.
Ela é experiente, se deu conta, no fim das contas. Mas às vezes não consegue
firmar o pensamento. Só fica analisando as maravilhas que experimenta,
imaginando onde tudo isso vai dar. Ela resolveu mostrar um pouco de si e
recebeu um tanto inesperado do outro e não sabe muito bem o que fazer com isso
depois de muito tempo fazendo tudo igual. Pelo menos vai aprender palavras
novas, ri. Ela estava no meio. Uma chorando de um lado, a outra chorando do
outro. É agora que bate palma? Ela não conseguiu chorar. Tudo ficou bagunçado,
ela mal conseguia respirar. Todos sangram vermelho, ela constatou. Mas a
música, a música foi perfeita.
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