a Tia
Viver é experimentar uma eterna solidão. Não tem como compartilhar nada. Nem dor, nem alegria. Cada um sente sozinho, do seu jeito próprio. A gente pode até tentar mas a importância é diferente para cada um e ponto. Se é dramatico é porque não sabe fazer de outro jeito. Se é pragmático é porque encara a vida na prática. Se é egoísta é porque escolheu se dedicar a apenas alguns poucos e bons. Se prefere se isolar na dor é porque aprendeu a se cuidar sozinho. Se se transforma no objeto de afeto é porque ainda não se descobriu de verdade. Se não consegue sorrir é porque não sabe o quanto é doce. Se volta para o antigo amor é porque se deu conta de que a paixão é mesmo fugaz. Se escreve é porque não sabe viver sem as palavras. A Tia morreu. E com ela levou o sorriso e o carinho que distribuia ainda que sentisse dor. Ela não reclamava, apenas aceitava. E vivia um dia de cada vez. Foi só ao vê-la com os olhos fechados naquela sala quente cheia de parentes distantes que eu me dei conta de que nunca conversei com ela. A Tia, que era uma instituição. Não precisava ser chamada pelo nome - que aliás ninguém sabia ao certo qual era o verdadeiro -, nem pelo sobrenome. Chamávamos apenas de Tia e ela vinha, com um sorriso, uma fala mansa, e os olhos cansados de quem já lutou muito nessa vida e ainda assim não tinha se deixado corromper pela tal solidão. Três filhas, vários netos e alguns bisnetos. Os oito sobrinhos que ajudou a criar depois que a mãe deles morreu jovem, com apenas 41 anos. Na terra estranha que ela nem teve tempo de aprender a amar. Os pequenos tornaram-se adultos de respeito. Formaram suas famílias, seguiram com a certeza de que a dor só faz o ser humano mais forte. Mas quando viram a pequena Tia deitada naquela sala, não contiveram as lágrimas. Era a segunda mãe que perdiam. Tão frágil ela parecia, mas todos lembraram do quão forte ela foi em vida. Assim era a Tia. Celestina. Como as estrelas com as quais ela deve estar agora. Dois dias depois de se despedir da Tia, o pai, que havia escondido as lágrimas com óculos escuros e surpreendeu a filha mais velha cantando as letras do cântico fúnebre em italiano, passou por uma cirurgia. Correu tudo bem como era esperado, mas carente, ele fez ais e uis e ous, sentindo dor ao tomar uma colherada da sopa. "Você dá risada", ele disse. Foi preciso reunir as três paixões da vida dele naquele quarto de hospital para aplacar um pouco da dor. Mas eu sabia que no fundo, aquele soluço todo não doía tanto quanto outras perdas que o velho pai teve nessa vida. "Se soubesse que doía tanto nunca teria feito essa cirurgia", ele reclamou. Daqui uns dias ele esquece e se concentra em novos modelos de caixas de papelão. Nada que uma injeção de Voltarem não resolva. E assim seguimos, cada qual na sua solidão. A Tia em outro plano. Os que ficaram, com a rotina para aplacar a saudade. O pai com a recuperação e os quilinhos a menos. A mãe de novo como a melhor cuidadora que alguém poderia ter. E as diferentes sopas que irão compor o cardápio da família nas próximas semanas. A caçula às voltas com a nova casa própria. A mais velha com os preparativos para as férias. A fofurinha completando um aninho de vida, com seus sorrisos desdentados e suas escapadas, engantinhado pela casa, alegrando a todos. Os amigos vivendo suas solidões. Rotinas que de vez em quando se encontram, para depois seguirem em paralelo. Viver é experimentar uma eterna solidão. E isso, no final das contas, não é nada mal. Nada mal.
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