sem título


Têm sido tempos estranhos. Não só para nós brasileiros, mas para a humanidade. Em particular, tenho vivido dificuldades diferentes e tudo bem. Estou na metade de mais um setênio, com quase 40 anos, solteira e empreendedora, num mundo que ainda prioriza o casamento, a maternidade e o emprego fixo, senão um cargo público. Estou à deriva e ainda assim tenho um plano. É possível? É perfeitamente possível flutuar e saber minimamente onde se quer chegar. A questão está em assumir que a sua rota e o seu destino nem sempre condizem com o que os outros esperam para você. Ou de você. E repito, tudo bem. Eu sou do jeito que sou e você é do jeito que é e só assim seremos felizes durante o percurso. Uns dias mais outros menos. E tudo bem. Felicidade é um momento não uma meta. Se correr atrás dela o tempo todo periga nunca alcançar e daí tudo o que se viveu perde o sentido. Então, quem quer ser feliz. Eu não. Quero, simplesmente, conquistar mais e mais momentos felizes. Quero paz. Mas quero e preciso de movimento.
Então, ao passear pela rede social despretensiosamente, depois de receber um convite do amigo para participar de um grupo de trovadores, me deparei com esta poesia de Clarice em meio às lembranças da amiga da irmã. Essa amiga que em determinado momento da minha vida me estendeu a mão, tornando-se um pouco minha amiga também. Essa poesia ela dividiu com outra amiga e assim um círculo de amizade invadiu minha tela nessa manhã, me transportando para as lembranças das minhas amizades. Tão imperfeitas quanto fundamentais para me fazer quem sou.
Para o amigo, agradeci o convite mas não entendo nada de trova. Meu negócio é escrever sobre minha realidade e de forma nada poética mas sim, terapêutica. Minha vocação é trabalhar sentimentos com palavras (ou doces). E por isso é tão difícil estar no tal emprego fixo neste momento. Pagar o preço de pertencer à sociedade. Em meu último setênio vivi a adolescência tardia. E cheguei aos 30 achando que tinha muito tempo. Neste setênio, minha consciência faz cobranças. Mas ainda há tempo para muitas experiências. Inclusive empreender. E amanhã tudo pode voltar ao normal, quem sabe, e meus pais ficarão mais tranquilos. Ou eles nunca estarão totalmente despreocupados porque, afinal de contas, são pais.
Depois de meditar e me cercar de objetos de proteção nos últimos dias, me vi tendo conversas realmente estimulantes com amigos que há tempos não via. E foi muito mais emocionante que qualquer mantra. Talvez essa seja minha religião. A amizade. Com todo o poder transformador que ela traz para nossas vidas. Deixo aqui a poesia da Clarice que me levou a divagar hoje. Ela me lembrou muito as conversas com as amigas durante as caminhadas matinais no parque. Movimento, elas pregam. Movimento.

MUDANÇA

Mude, mas comece devagar,

porque a direção é mais importante que a velocidade.

Sente-se em outra cadeira, no outro lado da mesa.

Mais tarde, mude de mesa.

Quando sair, procure andar pelo outro lado da rua.

Depois, mude de caminho, ande por outras ruas, calmamente, observando com atenção os lugares por onde você passa.

Tome outros ônibus.

Mude por uns tempos o estilo das roupas.

Dê os seus sapatos velhos.

Procure andar descalço alguns dias.

Tire uma tarde inteira para passear livremente na praia, ou no parque, e ouvir o canto dos passarinhos.

Veja o mundo de outras perspectivas.

Abra e feche as gavetas e portas com a mão esquerda.

Durma no outro lado da cama...

Depois, procure dormir em outras camas

Assista a outros programas de tv, compre outros jornais... leia outros livros.

Viva outros romances.

Não faça do hábito um estilo de vida.

Ame a novidade.

Durma mais tarde.

Durma mais cedo.

Aprenda uma palavra nova por dia numa outra língua.

Corrija a postura.

Coma um pouco menos, escolha comidas diferentes, novos temperos, novas cores, novas delícias.

Tente o novo todo dia.

O novo lado, o novo método, o novo sabor, o novo jeito, o novo prazer, o novo amor.

A nova vida.

Tente.

Busque novos amigos.

Tente novos amores.

Faça novas relações.

Almoce em outros locais, vá a outros restaurantes, tome outro tipo de bebida, compre pão em outra padaria.

Almoce mais cedo, jante mais tarde ou vice-versa.

Escolha outro mercado... outra marca de sabonete, outro creme dental...

Tome banho em novos horários.

Use canetas de outras cores.

Vá passear em outros lugares.

Ame muito, cada vez mais, de modos diferentes.

Troque de bolsa, de carteira, de malas,

troque de carro, compre novos óculos, escreva outras poesias.

Jogue os velhos relógios, quebre delicadamente esses horrorosos despertadores.

Abra conta em outro banco.

Vá a outros cinemas, outros cabeleireiros, outros teatros, visite novos museus. 

Mude.

Lembre-se de que a Vida é uma só.

E pense seriamente em arrumar um outro emprego, uma nova ocupação, um trabalho mais light, mais prazeroso, mais digno, mais humano.

Se você não encontrar razões para ser livre, invente-as.

Seja criativo.

E aproveite para fazer uma viagem despretensiosa, longa, se possível sem destino.

Experimente coisas novas.

Troque novamente.

Mude, de novo.

Experimente outra vez.

Você certamente conhecerá coisas melhores e coisas piores do que as já conhecidas, mas não é isso o que importa.

O mais importante é a mudança, o movimento, o dinamismo, a energia.

Só o que está morto não muda.

Repito por pura alegria de viver: a salvação é pelo risco, sem o qual a vida não vale a pena.

Clarice Lispector



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