angústrias x desangústias

Ela me pediu que fizesse um desenho. Já era quase fim de sessão, eu tinha ido dormir tarde, acordei cedo e trabalhei o dia todo em pé. Estava cansada. “Desenha uma ‘menininha’”, ela disse. Então fiz o clássico: cabeça em formato de “a”, sendo as perninhas do “a” os cabelos; palitos nos lugares de pernas e braços, bolinhas para mãos e pés, olhos redondos indicando que ela olhava pro lado, um nariz arrebitado e uma “meia boca” esquisita. Entreguei. Ela sorriu: “Melhora isso ai”. Acrescentei um vestido: dois triângulos, um menor representando o busto e um maior a saia. Os gambitos estavam bem abertos. Eu ri. “Não me pede para desenhar que não gosto.” “Nem quando era criança?” “Não. Sempre fui péssima em educação artística.” “Já com as palavras!”, ela brincou, analisando a obra de arte, inspirada no último desenho feito pela Isa, que está colado na minha geladeira. Ela procurou em sua pasta um outro desenho que eu havia feito tempos atrás, em outra sessão. Ao encontrá-lo, gargalhou: “É, não é a mesma pessoa”, sentenciou. Eu, sem entender, perguntei como ela poderia saber que mudei só de olhar uns palitos com bolas e triângulos versus a primeira versão - bem elaborada, na minha opinião - que tinha feito de uma “menininha”. “Olha bem, você não vê como a menina está bem mais ‘aberta’ no último desenho?” “Será?” “Repara o corpo disforme, as pernas fechadas, os olhos sem expressão. Agora veja esses palitinhos bem abertos do segundo desenho e o sorriso. Os olhos estão felizes”, explicou. E começou a comparar os caminhos que um dia eu tomava e por onde hoje já não passo mais. “Se antes você fazia escolhas inconscientes, hoje você sabe bem o que quer e o que não quer.” “Então por que não acontece?” “Está acontecendo, você não percebe? Não vê que abriu um espaço ai dentro que antes estava fechado. Que era ocupado por fantasias angustiantes. E que hoje está livre para receber o que vier. Livre para experimentar!” Bem no início da sessão, li para ela os versos do mais novo amigo escritor, que explicou a minha angústia muito melhor do que eu poderia explicar e o fez em letras minúsculas, como eu faria: “angústia é surda e muda, grita cá dentro, aguda, quem escuta de fora o que pode fazer?...minhas paredes? são parcioneiras e testemunhas. casca que cai é vida que vai”. Ela riu e reconheceu que essas coincidências vão acontecer muitas vezes ainda, como já aconteceram antes. Não há porque desistir, aconselhou. E eu lembrei de uma frase que li essa semana, do mesmo escritor. “Há de ser uma semana de desangústias.” Tão precisa, na qual eu acrescentaria minha particularidade: “Há de ser uma vida de desangústias daqui para frente”.

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