cadê minhas jujubas


Quando a gente tem uma vida confortável, com família estruturada e caminho quase que previamente traçado, a impressão que dá é que lá pelos 20 anos a gente tem a vida resolvida: é só arrumar o melhor emprego possível na profissão em que a gente se formou, juntar dinheiro para comprar a casa, o carro, encontrar o amor da vida, namorar, viajar, noivar, casar, ter filhos, ser promovido e ir levando até formar os filhos, aposentar, mimar os netos e esperar pelo fim. Por muito tempo esse foi o modelo de vida dessa nossa humanidade. Quem saía um pouco do script era julgado. Condenado. Passava a vida como um rejeitado. Aquele que deu errado, coitado. A ovelha negra da família. Todo mundo se preocupa com ele. O que vai ser dele, meu Deus? Mas daí a gente supera o bug do milênio e uma tal de internet nos conecta com quem nunca conheceríamos se ficássemos lá, vivendo a vida como pregam os tradicionalistas. A sensação é de que a gente pode tudo e não deve perder tempo. Eu, no meio disso tudo, nascida num século, crescendo em outro, vi muita coisa mudar justamente na minha geração. A família, o aprendizado, os relacionamentos, o casamento, as amizades, o trabalho, a saúde: tudo mudou de paradigma. Apesar de muitas pessoas insistirem em nos cobrar uma vida nos velhos modelos. Hoje eu vi uma foto na rede social que me tocou de um jeito que me fez sentar para contar sobre ela. Roberta, uma das duas dezenas de netos dos meus nonos imigrantes, colou grau. Ela, dois anos mais velha que eu, colou grau depois dos 40. Época em que deveria estar levando o filho para o primeiro ano da escola, se a vida como antigamente tivesse acontecido para ela. Mas não, ela estava linda e sorridente de beca, ao lado do pai e da irmã, comemorando uma vitória muito importante. Mas por que falar da Roberta? Coisa mais comum hoje em dia é gente mais velha se formando na faculdade. “Não dá pauta”, diriam alguns antigos editores. Mas sabe, eu me emocionei com a conquista da prima porque anos atrás, eu, recém-formada, vim para Londrina fazer uma entrevista de emprego num jornal local na mesma semana em que a Roberta começaria o cursinho em Londrina. Nós duas acolhidas pela Susane, também recém-formada pela UEL, e que já vivia na cidade há uns anos. Passamos uma semana juntas, tempo de eu receber o resultado da entrevista. Me lembro da gente se encontrando na rodoviária: eu chegando de São Paulo e as duas vindo de Pedrinhas. Fomos até a quitinete da Su, no conhecido edifício Batistela, e lá convivemos por uma semana a princípio e alguns meses depois. A Roberta é minha prima mas eu não a conhecia. A última vez que eu a tinha visto eu devia ter uns dez anos. Sua história é tão pesada e cheia de tristezas que vivemos muito tempo sem notícias dela. Mas essa história não me cabe contar aqui.  E apesar de ter infância e adolescência roubadas, lá estava ela, recomeçando. Ao nosso lado: Mari e Su, as primas inseparáveis das férias de verão na cidade de nome diminutivo. Com estruturas familiares bem parecidas, mas rotinas muito diferentes: eu tenho uma só irmã e a Su tem quatro irmãos. Estávamos as três primas com as idades mais próximas juntas pela primeira vez. E foi ai que surgiram as contradições. Vinda do sítio, onde cuidava da casa, cozinhava e cuidava da irmã mais nova especial, a Roberta viveria pela primeira vez na “cidade grande”. Já eu, trocaria a metrópole pelo interior. Tudo muito novo para as duas e a Su no meio disso tudo. Não foi nada fácil. Gostaria de dizer que fomos amigas de cara e que compensamos todo o tempo perdido afastadas na infância, mas não foi nada disso. Eu acabei passando naquela entrevista de emprego, comprei casa na cidade, fiz amigos, fiz outra faculdade, mudei de emprego e até hoje vivo em Londrina. A Roberta não. Largou o cursinho e voltou pro sítio. Foi demais para ela naquela época, eu imagino. Naquele ano eu a julguei tanto: como assim, voltar? Ela pode contar com a gente, não precisa ter medo, pensei, na época. Que pretensiosa eu fui. Eu não a conhecia. Ainda não a conheço. E pelos próximos anos permanecemos distantes, nos vendo apenas na festa de Natal. A Su mudou para Rolândia, casou, teve a Isa, e permanecemos grudadas como primas-irmãs que somos. E da Roberta conhecemos suas histórias pelas redes sociais. São coisas da vida? Com certeza. Então qual não foi minha surpresa ao ver as fotos da sua colação de grau, toda faceira. Encheu meus olhos de lágrimas e meu coração de esperança.  O sorriso dela é genuíno, de quem lutou e venceu. De quem luta todo dia, vence umas e perde outras como qualquer um. Aqueles dias em que vivemos juntas permanecem na minha memória como uma tentativa de resgate que ainda não aconteceu. Mas me mostram também que cada um tem seu tempo e deve respeitá-lo acima de tudo. Ela me ensina sobre compaixão, amor, dedicação, fé. Ela me ensina que devo agradecer sempre.  Eu tive tudo tão fácil, meu Deus, como posso lamentar meus reveses? A Roberta formou-se pedagoga e já trabalha ensinando crianças numa escola na cidade onde vive com meu tio e a Nana, minha prima que adora ir na missa e tomar café. A Roberta tem amigos, paquera, bebe batidinhas docinhas, canta, dança, cozinha, faz artesanato. Ela é uma mulher incrível e que bom que ela não terminou aquele cursinho naquele ano. Que bom que ela viveu a vida dela no tempo dela, tentando aplacar suas dores do jeito dela, sempre que elas apareciam. Sua responsabilidade é tamanha e às vezes injusta, mas ela não parece se incomodar. Ela simplesmente vive. Um dia de cada vez. E alcança, com perseverança e fé, o que está guardado para ela, porque ela é boa por natureza. Que sua caminhada seja cada dia mais leve, prima. Você merece toda a felicidade que conseguir viver.

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