você não sabe nada


Sempre que alguém senta na frente do balcão, fuscas contornam a rotatória. Parece bobagem mas você os vê passar, enquanto escuta a pessoa falar. Alguém chega contando histórias que muitas vezes não fazem o menor sentido. Depois que a pessoa vai embora, você se pega repensando o que ouviu e tenta associar aquelas ideias à sua vida. Sente que tem algo a aprender. Ainda não sabe bem o que.

Fuscas. Porque fuscas eu não sei. Só sei que desde que você brincou de ver fuscas no meio do trânsito para distrair a pequena impaciente sentada no banco de trás do carro, se vê contando os redondinhos pelo caminho. Sempre que vê um, não importa a cor, o sorriso vem. É como se o dia não pudesse dar errado uma vez que um fusca cruzou seu olhar. Sua idiota garantia de uma felicidade que nem sempre vem.

Cada um tem sua superstição particular: fazer o sinal da cruz sempre que passar por uma igreja, pedir para Maria passar na frente antes de sair com o carro, dizer mantras assim que acorda para que o dia seja positivo, checar trezentas vezes se fechou a porta da sala antes de sair, ficar olhando cada vidro do carro para garantir que trancou tudo e sem estar satisfeito, ficar olhando para trás para ver se o carro ainda esta lá. Dar aquele beijo estalado na esposa ao chegar em casa ou desejar bons sonhos antes de dormir também podem ser superstições, por que não? Um jeitinho manso de dizer eu te amo em meio à chata rotina: mais um meio de garantir as pequenas felicidades.

Desvirar o chinelo para a mãe não morrer, nunca dizer a palavra maldito, virar o elefantinho de porcelana para a parede para dar sorte, carregar um santinho na carteira, com as fotos em três por quatro de toda a família, não sair sem o escapulário no pescoço ou a imagem de São Judas presa com alfinete na lingerie. Ganhar e dar imagens de Buda de presente. Superstição pode ser colecionar palitos de dente e espalhá-los pelo carro, na bolsa, no bolso da calça, para nunca ficar sem. “Toma aqui um palito de dente.” E a pessoa fica sem entender de onde surgiu aquele objeto tão aleatório. Mas que felicidade palitar depois do almoço. 

Criar um universo particular de proteções. Cada um com a sua e todo mundo feliz. Então por que mesmo assim a vida dá errado, às vezes? Os fuscas continuam passando todo dia. Todo santo dia. E tem dias que a merda atinge o ventilador. Nem o fusca azul salva.

Sempre que ele vem você vê fuscas contornarem a rotatória. E sempre se pergunta por que ele apareceu assim, do nada, na sua vida. Deve ter um motivo maior. Não é possível ser apenas coincidência. Mas daí você lembra que romantismo é seu nome do meio e que uma de suas superstições é achar justificativa para tudo, ainda que saiba que as coincidências apenas acontecem.

Não existe a tal força do universo. Isso é balela. Isso é desculpa. Porque se existisse, as superstições nos protegeriam de todo mal e o Pantanal não estaria pegando fogo. A Amazônia não estaria em chamas. O óleo não estaria se espalhando por todo o litoral. Se as superstições realmente funcionassem, aquele cara não estaria no poder. Se as supertições fizessem sentido, o amor não viveria a mais de oito mil quilômetros de distância.

Mas você não é pessimista de verdade. Você é um otimista travestido de pessimista porque ser pessimista é legal. Reclamar tá na moda. Mas se você simplesmente seguir a vida sem ver as notícias você é um alienado. Dualidade cruel, pois se parar para ler as notícias, não levanta da cama. Lá fica, deitada de lado, pernas esticadas em frente ao ventilador porque o calor está de matar. Fica vendo fotos idiotas na rede social idiota sendo mais um idiota alienado. Deveria levantar e ir ao bar beber uma cerveja de trigo. É, talvez você devesse ir mais ao bar beber cervejas de trigo. E ouvir histórias.

Ô meteoro, aparece logo. Acaba com isso aqui porque não merecemos mais morar neste planeta. A terra merece coisa melhor e nós, a extinção.

Fuscas. Azuis. Brancos. Verdes. Fuscas, por que não? Eles sempre desviraram o chinelo mas a mãe deles morreu mesmo assim. Você viu um fusca hoje e ainda assim sabe que será um dia pesado. De muito calor. As chamas das matas chegaram aqui na terra vermelha, como era de se esperar. Temos um lago mas não podemos nadar. A piscina é coberta, não dá para ver as estrelas. Apela, então, pro chuveiro. Desliga e sente a água gelada arrebentar seu corpo quente. Minutos depois o corpo ainda está quente e será assim nos próximos seis meses pelo menos.

As pernas doem. Ficam penduradas na banqueta alta atrás do balcão. A vontade é sair correndo e ir esticar o corpo no sofá. De fugir para o universo paralelo on demand. E quando terminar de ver aquela história e quiser compartilhar com o amigo que viu primeiro, receber uma resposta inesperada. Você insiste que têm algo em comum, mas não é verdade. É romantismo. É a sua superstição particular para aplacar a solidão. Vocês não têm nada em comum. Nada.

Todo dia você tira o pão de queijo da estufa, coloca no saquinho, pega dois reais e devolve cinquenta centavos. Pelo menos umas cinquenta vezes por dia. Todo dia você lê os nomes nos cartões de crédito na ideia de conversar com a pessoa quando ela voltar. Na vontade de saber no que ela trabalha, o que gosta de fazer aos finais de semana. Por que sempre o pão de queijo e não o bolo de cenoura? No início não haviam notas de cinco. Agora, cinco é tudo o que você recebe.

Esta primavera começou arrastada. Deve ser os quarenta graus lá fora. Ou aqui dentro porque não há ventilador nem ar condicionado. Você aproveitou para ler dois pequenos livros em dois longos dias. Histórias confusas e tristes. Você leu porque não conseguiu parar. Simplesmente queria saber o final. Você gosta de finais felizes mas teve morte. Não foi decepcionante. Foi instigante. Queria escrever assim, pensou. Inventar narrativas. Criar personagens fictícios. Mas você só sabe falar de fuscas. E daquilo que está dentro de você. Sua mente é sua sina. Sua maior inimiga.

Ele disse que o personagem estava nele e precisava sair. E o que está em você e precisa sair? Fuscas? Você não faz poesia. Sequer lê ou gosta de poesia. É da prosa. Da linearidade. Do básico. Da pauta. Do lead. Mas depois de ler três curtos livros em três longos dias desde que sentou nesta banqueta atrás do balcão se pega pensando em um personagem que precisa escapar. Talvez esse personagem seja você. Talvez você se escreva e entenda por que conversa com os fuscas pelo caminho. Ou talvez seja melhor deixar essa história guardada nas quatro paredes do consultório. Você se expõe demais, dizem. Você só queria saber inventar histórias. Mas não sabe.

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