tão longo que ninguém vai ler

Eu sempre ouvi quando pequena que precisava de psicólogo. Que devia ter alguma coisa de errado comigo e que eu precisava de ajuda. Eu passei a infância sentindo uma timidez tremenda, uma vergonha de ser quem eu era e isso incomodava todo mundo ao meu redor e a mim também, porque eu vivia tendo que me explicar. 
Eu me tornei mulher muito cedo, quando ainda era uma criança. E isso sempre me incomodou. A ponto de odiar meu corpo. Odiar sair de casa. Odiar me arrumar. Eu achava que todo vestido, saia e sandália que eu colocasse chamaria muita atenção e isso era tudo o que eu não queria. Então passei bons anos me escondendo em camisetões e shorts de ginástica e tênis all star. Eu me escondia atrás do meu lindo, louro e liso cabelo comprido que tomava as costas e deixava um bronzeado meio estranho quando eu ia para a praia. Era a única coisa que eu gostava em mim: meu cabelo liso, que dava um trabalhão para desembaraçar. Fora isso me achava bem fora do padrão. 
Estatura baixa, seios e braços grandes, quadril zero, dor nos joelhos. Eu era uma nerd e fiquei ainda mais nerd quando passei a usar óculos para corrigir a miopia aos 16 anos. Mas tudo bem, eu estava escondida e podia seguir vivendo minha vida tranquila de casa para a escola e da escola para casa. 
Gostava muito de ver séries na tevê e de ficar no quarto gravando músicas das rádios FM. Tinha dezenas de coletâneas pop com as minhas músicas favoritas. As fitas ainda estão guardadas. Também praticava meu inglês com músicas dos Beatles que eu ouvia numa fita que meu pai tinha ganhado de um amigo que era muito fã da banda. Ainda tenho essa fita que era trilha sonora das viagens a Pedrinhas. 
Enquanto isso, o pessoal da escola participava das festinhas de aniversário dos colegas: os famosos bailinhos de garagem, tão em alta naquela época. Eu quase nunca era convidada e não convidava ninguém para os meus aniversários porque nasci nas férias de dezembro. Nas minhas festinhas era sempre a família e duas irmãs que eram minhas amigas e as únicas que sempre faziam questão de ir brincar na minha casa. Eu também fazia questão de brincar na casa delas porque sempre me senti muito bem recebida pela família Sanches de Freitas. Para o resto dos coleguinhas eu morava longe demais. 
Eu me lembro de ter ido a apenas um bailinho, na casa de uma das meninas da minha turma, que também era bem tímida mas que tinha uma mãe que gostava de dar festas. Estávamos as quatro amigas meio nerds de um lado e os quatro amigos meio nerds da nossa turma do outro, numa garagem na Vila Maria e ninguém dançou exclusivamente com ninguém se me lembro bem. Ao invés disso, dançamos todos juntos, pois éramos todos muito, mas muito tímidos. 
No mesmo ano, soube que o menino que eu gostava tinha ficado com a menina nova na festa de aniversário de uma colega de turma para a qual eu não fui convidada. Mas eu já sabia que aquele garoto nunca me daria bola mesmo. Eu achava ele muita areia para o meu caminhãozinho tímido. 
Mudei de escola e continuei quieta, apesar de todos os professores me chamarem pelo nome na sala de aula e até pelos corredores da nova escola. Foi um choque: eu deixei de ser mais uma na multidão para ser a Guerin, que corava sempre que ouvia seu nome em voz alta. Permaneci no grupo dos impopulares que detestavam fazer educação física. Ao invés disso, trocava bilhetes com as amigas durante a aula: versos que aprendíamos nas aulas de literatura e músicas do Legião. E sobre os garotos de quem a gente gostava, mas com quem nunca conversávamos. 
Passei mais três anos sem ir a festas ou nas danceterias, como eram chamadas as baladas na minha adolescência. Passei também os quatro anos da universidade indo de casa para a faculdade e da faculdade para casa ou da faculdade para o estágio para casa. Nada novo. As mesmas amigas quietas e que se perdem na multidão. Minha zona de conforto que me ajudava a enfrentar o fato de que eu queria ser jornalista e mais cedo ou mais tarde teria que conversar com pessoas.
Eu escrevia muita bobagem, principalmente a angústia de ter que ouvir sempre que havia algo errado comigo: eu não tinha vaidade como as outras meninas, não saía de casa, não namorava, fazia tudo ao contrário do que as pessoas de 20 anos faziam. E ainda me comparava com a irmã mais nova, que sempre foi meu oposto. É, talvez eu precisasse mesmo de terapia. 
Durante a faculdade tive um namorado que me fez sentir parte de alguma coisa. Mas durou pouco porque eu gostava mais dele como amigo e só namorei porque queria fazer o que todo mundo da minha idade estava fazendo. E desde então nunca mais namorei. Nunca consegui gostar de alguém que gostasse de mim: ou eu gosto, ou ele gosta, nunca os dois gostam juntos. E assim vivi meus últimos 20 anos. 
Ao final da faculdade, cruzei o oceano para buscar algo que sempre gritou dentro de mim e eu precisava encontrar: minha origem italiana. Foi lá na bota que eu me vi sozinha pela primeira vez na vida, sem mãe para segurar nas mãos e fazer amigos para mim. 
Eu conquistei mais do que poderia imaginar naquela curta viagem de quatro meses. Fiz um amigo para a vida toda de quem me lembro todo santo dia com muito carinho. Foi algo tão significativo que me despertou para as minhas capacidades e me trouxe para a vida que vivo hoje em Londrina.
Aqui, aos 30 anos, vivi as baladas que nunca vivi na adolescência. Conheci pessoas tão interessantes e aos olhos delas, descobri que eu posso ser também interessante. Não estaria mais sozinha. 
Finalmente procurei a ajuda que meus pais queriam para mim quando eu era pequena e foram dez longos anos de conversa com a moça da poltrona marrom. Ainda assim, sempre que uma discussão se apresenta na família, eu ouço que a terapia não deve fazer efeito sobre mim porque eu continuo a mesma. Pode até ser verdade aos olhos de quem nunca quis iluminar as próprias sombras e joga luz na escuridão do outro para se sentir por cima. Mais fácil ficar no escuro, escondido. Eu mesma me escondi por anos e ainda escondo muita coisa por medo da opinião alheia. 
Eu entendo que perder o controle dá a impressão de que a gente permanece errado. Mas a verdade é que a gente só quer mostrar pontos de vista diferentes e às vezes precisa gritar para ser ouvido. Mas quando se grita com alguém que não quer ouvir, de nada adianta. Devo admitir que gritar não faz nenhum sentido mesmo. Eu mudei sim. Muito. Mas como o outro não mudou, ele me enxerga com os mesmos olhos. E o conflito se repete infinitamente. 
Será mesmo que a solução é ignorar, se fazer de tonto e viver só a parte boa? Será que o conflito não está ai para gerar crescimento? Para a gente aprender um com o outro? Eu não acho mais que vim ao mundo só para satisfazer as vontades de quem me colocou nele. Seguir o script desenhado pela sociedade que hoje já não é a mesma de quando eu nasci. Eu tenho minhas próprias vontades e meu jeito particular de fazer as coisas.
Eu realmente cansei de me explicar. De me justificar. Eu quero abraçar aquela menina tímida da infância e contar para ela que mesmo com muito medo ela foi jornalista e hoje ela ensina uma pessoa que está começando, assim como ela começou um dia. 
Eu diria para ela que está tudo bem ser tímida, ter seu próprio tempo de fazer as coisas, que tudo vai acontecer quando tiver que acontecer porque a vida irá prepará-la para o que ela deseja antes dela conquistar. Que não adianta nada ter sem entender por quê. Melhor é ter calma, ainda que dê vontade de chorar de vez em quando. 
Eu diria que chorar faz parte, que viver a tristeza é tão importante quanto saborear a alegria. Que a gente cresce um pouco todo dia e não para nunca de ser melhor: não existe perfeição. 
Eu diria que ela é linda demais. Eu abraçaria aquela adolescente cheia de espinhas no rosto e que era magra mas se achava gorda e diria para ela se culpar menos por querer ficar em casa. Eu diria para ela simplesmente dar uma chance ao acaso e parar de fantasiar. Lembraria ela que pensar demais faz parte da rotina dos ansiosos e tudo bem. 
Eu diria para ela que a terapia causa um medo bom mas que ela finalmente a procurou e no tempo certo. E aprendeu muita coisa. Muita mesmo. Eu diria novamente que não existe perfeição. Do mesmo jeito que os pais usam o discurso do errei tentando acertar, eu diria para ela que todas as suas tentativas de fazer parte do todo foram querendo acertar e muitas vezes ela conseguiu, só se comparava muito para poder aceitar que estava tudo bem. Que se ela tivesse ouvido mais a si mesma e menos aos outros teria sido muito mais feliz na adolescência. Mas como já passou, eu simplesmente a abraçaria e diria que tudo transcorre bem hoje. 
Eu abraçaria a mulher de 30 anos e diria para ela que as melhores lembranças da minha vida até agora foram todos os amigos, os shows, as festas e as viagens que fiz nessa última década, quando fiz minhas próprias escolhas. Eu agradeço a coragem dela em finalmente iluminar as sombras e me resgatar da escuridão onde eu me escondia. 
Eu abraço essa mulher imperfeita prestes a completar 40 anos e digo para ela que o hoje é sempre a nossa melhor versão. Ah, e que ela não precisa mais se explicar não. Ela é boa o suficiente do jeitinho torto que ela é.

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