Páginas e páginas de culpa
Guardo no fundo do armário uma caixa de cartas que tenho recebido desde 1989. São 33 anos de lembranças. Todas boas. Cartões de aniversário, de Natal, de formatura. Folhas de caderno com dezenas de recadinhos das amigas do primário, do colegial, da faculdade, do jornal. Muitos envelopes feitos à mão, com detalhes coloridos, adesivos. Tem carta das primas, das amigas, da mãe, da irmã, da vó. De quem um dia foi família e hoje já não é mais. Mas tem uma única carta, de quatro ou cinco páginas, que eu guardei só para lembrar que um dia eu também já magoei muito alguém. Uma única carta de uma pessoa que abandonei há 23 anos. Linhas que hoje estão quase ilegíveis.
Nesta carta, que hoje eu fui reler e descobri que o tempo a deixou quase ilegível, eu sou descrita como a pior das amigas. Enquanto ela provou sua amizade para mim de inúmeras maneiras, eu só fiz magoá-la. E ela sofreu tanto, que precisou desabafar nesta carta, que mais parece um diário dos dois anos em que fomos "amigas".Me lembro da sensação de horror que senti quando li pela primeira vez a carta. Não conseguia parar de chorar. De vergonha. De raiva. De medo de ser essa pessoa descrita por ela nas centenas de linhas.
Minha mãe leu a carta e automaticamente acreditou em tudo que estava escrito e sentiu vergonha da filha. Como eu poderia ter sido uma pessoa tão ruim, ela perguntou. E eu me lembrei de todas as amizades que tive até então. Em todas as brigas bestas com as amiguinhas, que mudam de preferência como quem muda de meia. Algo que hoje eu sei que é normal entre crianças que estão se conhecendo, mas que, na época, eu achava que tinha algo errado comigo.
Minha mãe dizia que eu era maria vai com as outras, que vivia trocando de amiga, mas nunca me perguntou como eu me sentia quando uma amizade acabava. Ela assumia que era culpa minha e pronto.
Com essa "amiga" da carta foi a mesma coisa. A diferença é que já tínhamos 18 anos. Não éramos crianças. Ou talvez éramos. Hoje eu reconheço que ainda era.
Reli esta carta várias vezes ao longo dos anos e a sensação de culpa vem. Como permanece sempre que uma amizade esfria. Eu me apego às palavras de uma desconhecida ao invés de me reconhecer nas palavras de tantas outras pessoas que só me disseram coisas boas, algumas que ainda fazem parte da minha vida depois de 20 anos, diferente daquela "amiga".
Fui procurar alguma cartinha fofa dela de antes da briga e não encontrei nada. As únicas palavras que ela me escreveu em todo o tempo que convivemos foram essas duras acusações.
Não. Eu não respondi a carta. Não encontrei argumentos. Resolvi fazer o que faço melhor: guardar. E fui viver minha vida.
Daqueles quatro anos de jornalismo tenho lembranças tristes. Não fui uma universitária normal e feliz. E só hoje entendo a razão. Já não me culpo por não ter agido como jovens agem aos 20 e poucos anos. Já entendi que eu não era uma jovem normal aos 20 e poucos anos. E isso tirou o peso das decisões que tomei na época.
Mas quanto a essa carta e essa amizade, não me arrependo de nada. Ao contrário: fui o exato oposto com todas as pessoas que passaram pelo meu caminho desde então. E fiquei com o sofrimento para mim. Escrevendo cartas que nunca enviei.
Fui aprendendo que amizade a gente não cobra, a gente vive. Uns dias mais perto, outros mais longe. Que elas passam. Duram o tempo certo. Mas que precisa ser uma troca justa. Por isso ainda sinto culpa quando releio a carta.
Nunca foi uma troca justa entre nós. Ela sempre linda e desinibida. Eu, tímida e retraída. Uma menina que não se reconhecia em seu corpo de mulher. Que não gostava de si. Ao contrário da nova "amiga", que arrancava suspiros por onde passava e mantinha uma lista de beijos. Eu mal tinha beijado aos 18 anos.
Ela gostava de balada e axé. Eu gostava de ver séries e ouvir rock dos anos 1960. Ela usava maquiagem e salto todos os dias. Eu usava tênis e moletom. Ela namorava e eu tinha uma paixão platônica pelo vizinho. Ela sabia dirigir e minha mãe me deixava na porta da universidade.
Eu sei que isso não significa nada. Não temos que ser idênticos aos outros para nos tornarmos amigos. Mas do mesmo jeito que eu nunca soube o quanto fui importante para ela até ler a carta, ela nunca soube o quanto foi difícil para mim fingir estar confortável tentando ser sua amiga. Isso é um pouco cruel da minha parte, eu sei.
Mas a verdade é que só depois de adulta eu entendi que não tinha nada de errado comigo. Que eu não precisava mudar para que o outro gostasse de mim. Aos 19 anos, lendo a carta, eu me achei um peso. Que se eu tivesse respondido às expectativas dela, seríamos amigas até hoje. Ainda bem pela carta, ainda que triste. Porque seria uma prisão para mim tentar suprir as necessidades dessa amiga.
Seguimos nossas vidas separadas e eu sempre rancorosa comigo mesma, me culpando. Me culpava tanto que não conseguia sequer olhar nos olhos dela. Sequer estar no mesmo ambiente. Me sentia envergonhada. Ela mudou para o curso noturno e eu terminei a faculdade segurando a mão de uma amiga para nunca mais soltar. Já são 24 anos de amizade.
Nunca me esquecerei da noite da colação de grau: estacionamos os carros um lado do outro, ao mesmo tempo. Não nos falamos. Meus pais a cumprimentaram, claro. Para eles, a culpada da briga sempre fui eu. Eu tremia e ainda carregava a culpa. Abaixei a cabeça e fingi que não a conhecia. Por dentro, minha vontade era abraçá-la e esquecer a briga. Já haviam se passado dois anos e éramos adultas. Isso nunca aconteceu.
Nunca mais nos vimos. Descobri, anos depois, nas redes sociais, que ela trabalhou na mesma editora da qual pedi demissão um ano depois de me formar. Ela seguiu escrevendo sobre artesanato. Eu segui sendo repórter de um jornal diário. Os papéis se inverteriam: ela ficaria nos bastidores e eu teria que enfrentar as reportagens de rua apesar da minha timidez.
Descobri, afinal, que tinha mais qualidades do que havia imaginado naqueles doloridos quatro anos de faculdade. Que sou, enfim, jornalista. Como desejava ser desde os 12 anos.
Nem as redes sociais nos aproximaram, passados 24 anos daquele dia de trote, em que descobrimos que éramos vizinhas e entramos no carro da minha mãe cobertas de farinha.
Aquela culpa em não ser a amiga ideal vez ou outra sopra nos meus ouvidos, mas a culpa de não ter sido a sua amiga ideal já não dói tanto porque eu conheço a minha versão da história.
Já tentei provar para a minha mãe o quão boa amiga eu sou e já sofri demais caindo em contos do vigário. Não caio mais. Hoje eu me reconheço em cada um que segura a minha mão, sem medo de chorar com eles porque eles choram por mim também. Nos amamos exatamente como somos, perfeitamente imperfeitos. Que delícia saber que tem alguém que gosta de mim apesar de mim.
Uma única carta ruim em meio a tantas lembranças boas me ensinou mais sobre minhas qualidades que sobre minhas falhas. Acho que, finalmente, posso dizer para ela: obrigada, "amiga". E dizer para mim mesma: você é suficiente exatamente como é, Mariana.
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