o dia em que encontrei o convite do meu aniversário de 1 ano num livro de Simone de Beauvoir

Depois de mudar do apê do bosque, onde tinha vivido os últimos 13 anos e quase toda a pandemia, para um apartamento com vista para o Vale Verde, nos "Jardins londrinenses", em outubro do ano passado eu resolvi passar uns dias no apartamento dos meus pais, em São Paulo. Acabei ficando por lá dois meses.

Minha irmã também estava lá. Sua casa estava em reforma e ela e o marido mudaram-se pro Novo Mundo por um ano. Dormiram no meu quarto de adolescente enquanto eu dormi no quarto dela que, de dia, se transformava em escritório. Minha irmã trabalhou muito enquanto estive lá. Eu chorei muito.

Fuçando no armário cheio de livros da minha mãe, resolvi começar a ler Simone de Beauvoir. Nunca tinha lido. Nem imaginava que minha mãe tinha um livro com essa temática. Então comecei a ler, devagar. 

Estava fazendo tudo devagarinho em outubro passado, com uma dose de vacina no braço e máscara no rosto. Saí de casa para encontrar as amigas pela primeira vez em quase dois anos de pandemia. Nos juntamos com a prima e fomos comer um brunch nos Jardins. Foi como turistar em casa. 

Também comi com o casal de amigos num restaurante ao ar livre e passeei pela Pompeia com direito a café, babka e lambidas de duas cachorrinhas fofas. Fui à dentista da infância, que me receitou ansiolíticos, lavei roupa e fiz comida enquanto minha mãe se recuperava de uma crirugia de catarata, enfrentei o hospital lotado com ela surtando de medo. Foram dias intensos, que terminaram com uma queimadura de primeiro grau nas pernas, depois de tomar meia hora de mormaço na praia, quando fui conhecer o apartamento novo dos meus tios, no Guarujá. Me deem um desconto: fiquei trancada num apartamento sozinha por dois anos.

Comemorei aniversários em família: o da mãe, da prima, da irmã, da vó e o meu. Acabei com a adega de vinhos da minha mãe num almoço de domingo com as amigas. Passeei no shopping com a tia e chorei no meio do almoço, reclamando do coração partido. Até que arrumei a mala, coloquei o livro da Simone na mochila e voltei pra casa na ânsia de finalizar mais um ciclo. Estava decidida de que 2022 seria diferente.

E está sendo. Voltei a escrever, a fazer terapia, a dançar flamenco na escola, a sair com os amigos pra beber uma vez por semana. Tomei a quarta dose de vacina e aboli o uso da máscara recentemente. Até coloquei o tênis de caminhada e andei pelo bairro por alguns meses, com direito a comer pastel na feira. 

Aposentei os cortadores de bolachas, gastei o último pacote cacau em pó, organizei os apetrechos, liberei espaço nos armários. Fiz as contas de quantos meses conseguiria viver com o que tinha no banco sem precisar mexer na aplicação que não rendeu nada por conta da crise econômica. E estética. 

Passei o carnaval na piscina de uma chácara, entrei no aplicativo de namoro, fui a um "primeiro encontro" depois de décadas, beijei um cara no cinema, saí do aplicativo, escancarei o que sentia numa tentativa de conversa e fiquei plantada sozinha numa cafeteria depois de assustar um cara.

Segurei a mão do amigo num velório e enterrei muitos ressentimentos naquele mesmo dia, num choro incontrolável. Tremi por uns dois meses enquanto tentava encontrar concentração para escrever manifestos para uma cooperativa de médicos e uma marca de comida chinesa. Tenho chorado toda sexta-feira.

Terminei de ler "O sol é para todos" e decidi retomar a leitura de "O segundo sexo". Cheguei hoje em casa, depois de uma divertida aula de flamenco em que todas concordamos que "ele não", e peguei o livro, após guardar os brincos no armário.

Ao folhear, encontrei um cartãozinho: "a mamãe e papai", escrito com a letra inconfundível de dona Guacira. Abri e vi o convite para o meu primeiro aniversário, em 12/12/81, às 18:00, na "casa da vovó". Minha mãe separou um convite para ela e meu pai terem uma lembrança daquele dia. E guardou num livro de Simone de Beauvoir! Peito apertou e eu chorei.

Sentei no sofá para ler a introdução do livro: 17 páginas colocando a mulher na condição de "outro", "inessencial", "o ser relativo", "vassala do homem", "a imbecilidade, a fragilidade do sexo",  "ela não é senão o que o homem decide que seja". Me deu um certo enjoo ao encontrar frases como "há um princípio bom que criou a ordem, a luz e o homem, e um princípio mau que criou o caos, as trevas e a mulher", de Pitágoras. E não sei se vou conseguir chegar até o final dessa obra. Mas vou tentar. Preciso aprender e entender e praticar minha feminilidade. Afinal, 2022 é para isso.

Minha mãe tinha 33 anos quando leu este livro, em 1988. Naquele ano, eu ia fazer oito anos só em dezembro e gostava de ver Jaspion na TV. 

Depois de ler apenas a introdução, liguei para a dona Guacira, que estava às voltas com pendências do imposto de renda, e perguntei se ela lembrava o que tinha achado do livro quando leu. Ela me contou que não lembra de muita coisa, só da frase "ninguém nasce mulher, torna-se mulher" e que sabia que era um livro importante para a sociedade e para as mulheres.

Mesmo tendo sido impactada pelas palavras da filósofa francesa, em 1988, ela seguiu cuidando da casa e da família sem deixar transparecer que o machismo estrutural em que ela foi criada já não servia mais. Ela decidiu criar as filhas para seguirem caminhos totalmente opostos aos seus. E deu certo. Mas os questionamentos continuam.

Minha mãe vem de um lar humilde. Meu avô era contador e com seu pouco estudo criou os três filhos na periferia paulistana. Minha avó não terminou a quarta série. O Milton, assim que pode, aposentou-se e passou uns 30 anos sentado na poltrona vendo TV, enquanto minha vó cozinhava e limpava e ganhava uns trocos no jogo do bicho.

Minha mãe foi educada para casar, assim como a minha vó. Então, quando firmou compromisso com meu pai, largou a faculdade de química para casar. Seu irmão mais velho, trabalhador desde cedo, também largou a faculdade de contabilidade, a poucos meses da formatura, para casar. Sua irmã caçula nunca cogitou fazer faculdade. 

Meu pai foi o primeiro da família de agricultores imigrantes a concluir a universidade e eu, neta mais velha da família materna, fui a primeira a concluir a faculdade, algo normal para os seis netos que vieram depois de mim, mas que nem passava pela minha cabeça quando minha mãe leu Simone.

Minha irmã, inclusive, seguiu nos estudos e é pós-doutora e uma prima é mestre, como a mãe dela, minha madrinha que tornou-se professora depois que oa filhos já estavam grandes. Nenhum dos netos da Therê fala muito em casamento e nenhum tem filho. Mas todos se sustentam com a profissão que escolheram e votam 13. 

Engraçada essa descoberta de um convite de aniversário dentro de um livro feminista justo hoje, a 12 dias do segundo turno de uma eleição presidencial histórica. Um ano depois de eu ter resgatado essa obra que chegou para mim num período nebuloso, de questionamentos e mais uma tentativa de recomeço, entre os meus tantos recomeços.

Outro dia me peguei pensando que a primeira vez que precisei recomeçar foi aos três anos, com o nascimento da minha irmã, depois quando meu corpo começou a se desenvolver e virei mulher aos 12 anos, ainda criança. Depois quando mudei de escola, de supetão, aos 14 anos. Quando entrei na faculdade aos 17. Quando terminei aos 21. Em cada estágio concluído. Quando completei 22 anos na Itália. Ou quando fiz 23 em Londrina. 

Recomecei quando fui repórter rural e depois de cidades. Quando entrava no jornal às 7 da manhã para atualizar o site e quando me tornei editora do site. Recomecei quando precisei testar carros e quando me tornei editora do caderno rural, enquanto cursava faculdade de gastronomia. Recomecei quando iniciei a psicoterapia e tomei fluoxetina pela primeira vez. Quando troquei a gastronomia pela confeitaria e o jornal impresso pelo portal.

Recomecei depois do burnout. Das sociedades falidas. Das bolachinhas caseiras. A cada pano que passo no chão do apartamento e a cada roupa e louça lavada. Depois de fundir o motor do carro e cair da garupa da bicicleta.

Recomecei depois da gastrite, da surdez, das alergias, das pernas inquietas, da retirada da vesícula. Recomeço todo dia tomando a levotiroxina sódica meia hora antes do café da manhã e a sinvastatina depois da janta. Recomeço quando espalho o creme antissinais no rosto e encaixo a placa de bruxismo antes de ir pra cama. Recomeço a cada amor platônico não correspondido.

Recomeçamos todos nós, todos os dias. Não é defeito, como eu pensava. Recomeçar é sobreviver. É ser. Estar. Se reconhecer humano. E igual ao outro. Não só "outro". Igual nos medos e impotências. Igual nas fragilidades. Nas perdas. E ganhos. Mas mais que isso, igual na capacidade, na potência, na realização. E até na preguiça.

Eu preciso terminar esse livro. Mas preciso, antes, dar um abraço na minha mãe e entregar a ela o convite do meu aniversário. Ela entendeu tudo aos 33 e seguiu fazendo o que conseguiu com o que tinha à disposição e hoje, prestes a completar 67 anos, está concretizando um sonho: viver olhando o mar. 

Já eu entendi aos 41, quase 42, e seguirei fazendo o que consigo com o que tenho: minha percepção, meus sentimentos intensos e minhas palavras. Recomeçando sempre, até não precisar recomeçar mais.

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