uma boleira de vidro

 Minha vó comemorou 90 anos em dezembro. Reunimos alguns sobrinhos, uma cunhada, amigas, filhos e netos para brindar a vida da Therê com chope e crepe. 

Ela tem saúde: caminha, troca de roupa, arruma a cama e gosta de dizer que ainda consegue lavar os pés. Faz tudo sozinha. Minha vó dança!

Estamos sempre alimentando a vó porque ela diz que perdeu o paladar. Que só come para viver. Que velho perde a validade.

Sua memória está travessa: foge e volta e foge e volta. E às vezes a confusão se instala.

Meus pais decidiram que ela vai morar com eles na praia. Eles alugaram o apartamento da capital e se mudaram para a praia, a duas quadras do mar.

Lá tem um quarto com um colchão novinho para a vó que ajudei a escolher. Tem uma tevê que ajudei a sintonizar os canais, tem o radinho com o cd do Tonico e Tinoco e fotos de todos nós. Não é a casa dela. Todos sabemos. Principalmente ela.

Ao mudar, minha mãe trouxe o máximo que pode de coisinhas da casa da vó para ela se reconhecer no dia a dia. Um conjunto de pratos, baixelas, toalhas de mesa, de banho, lençóis e colchas.

Às vezes a vó tá almoçando e quando vê o desenho do prato, diz: "Parece com o prato que eu tinha em casa!". E minha mãe logo completa: "Esses pratos são seus, dona Terezoca!".

E assim tem sido: ela concorda em dar coisinhas para os netos e depois esquece e fica brava. E seguimos explicando.

Eu ganhei três taças, uma de cada tamanho, alguns lençóis e fronhas manchados e muitas toalhas de rosto. Ganhei também a boleira de vidro que, segundo a Therê, teria sido da vovó Giustina e por isso tem mais de 100 anos.

Hoje fizemos uma chamada de vídeo e mostrei pra ela o bolinho de iogurte dentro da boleira, em cima do balcão da minha cozinha.

"Mas quando foi que você pegou essa boleira?"
"No Carnaval, vó, lembra?"
"Hummm..."
"Tá vendo essa correntinha aqui, vai ser sua quando eu for."
"Eu sei, vó. A senhora me contou", sobre a corrente com o pingente de madrepérola com a imagem de Santa Terezinha que ela ganhou da madrinha dela no dia do casamento com meu vô.

Eu fico tão feliz de ver essa boleira todo dia na minha cozinha. De dormir no lençol amarelinho que ela dormia com o vô, ainda que as fronhas estejam esgarçando. Eu gosto de me enxugar na toalha de banho branca com o nome dela que não combina com as tolhas de rosto coloridas e avulsas. Eu fiz minha própria combinação de toalhas da vó e só tenho usado elas ultimamente.

Eu não quero usar a corrente tão cedo. Eu quero brigar com a minha vó por muito tempo ainda. Ouvi-la dizer que não tem fome e devorar uma pratada. Tomar seu café com leite e pão com margarina de manhã para passar a tremedeira. Dormir com o abajur aceso para ir ao banheiro de madrugada com segurança.

A Therê ainda tem muita história pra lembrar e esquecer, afinal, ainda consegue lavar os próprios pés. debaixo do chuveiro.

Comentários

  1. Que texto lindo, Mari! Vida longa a vó Therê! Que vocês possam compartilhar muitos momentos ainda!

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  2. Lindo como sempre Mariana

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