Zio

 Será que tudo o que vivi nos últimos dias me preparou para esse momento? Será que alguém está realmente preparado para entender a morte? Será que a gente deve apenas respeitar e aceitar? 

Meu tio mais velho morreu. Lutou uma batalha contra uma doença traiçoeira que tirou sua alegria de viver. Seu corpo cansou e seu coração parou. 

O jovem sério que virou meio pai dos irmãos, depois que a mamma morreu cedo, e botava medo nos pequenos por conta da responsabilidade assumida tão jovem, tornou-se um tio divertido. Que gostava de contar as histórias da Itália e do sítio. Falava o dialeto do Friuli e ensinou aos sobrinhos paródias italianas que decoramos sem saber o que significavam as palavras difíceis de repetir. Tiri biri...more seco...pater nostri...fa tre di che non l'hai di...se mia nonna non mi da pan...na notte di Natale, nasce un bel bambino...Maria con il velo copriva Jesu...e assim a gente matava a saudade do zio Mario todo Natal. 

Quando a gente pegava a estrada para visitar os irmãos do meu pai na minha infância, ele chegava na cidade e ia "pedir a benção" do Mario. Ele ia lá conversar com meu tio sobre  a vida. Enquanto eles tomavam cerveja, eu bebia coca-cola. A gente - eu, a Na, a Su e a Thais - tinha mania de fazer a via sacra de bicicleta visitando cada uma das tias. E na casa da tia Paola tinha almoço com lasanha e frango assado. Era quase uma festa e eu sempre me sentia especial. Ainda que não gostasse tanto da lasanha verde de espinafre como quase toda criança. 

Brincava na rede que o tio balançava alto para fazer a gente cair. E adorava aquele quintalzão com uma mangueira enorme, que servia de esconderijo para a brincadeira. A gente corria por todo o quintal, brincando de esconde-esconde. E depois tomava um copo de coca gelada e comia bombom garoto. E montava na bike e seguia a via sacra. No caminho para a casa do tio tinha a casinha de bolo de fubá: a casa amarelinha da rua de trás. Eu adorava passar em frente daquela casa diferentona que ficava perto da igreja.

De vez em quando, o zio levava a meninada para andar na caçamba da pampinha e acelerava na lombada para dar frio na barriga. E ele sempre perguntava: ha tu pissigolis? Você tem cosquinha? Enquanto apertava nossa barriga ou beliscava nosso braço. Um dia, quando eu era pequena e o tio foi visitar o nonno que fazia um tratamento de saúde em São Paulo, ele se espantou comigo: essa menina vai morrer, decretou para a minha mãe, porque eu só bebia coca-cola e comia miojo. Sobrevivi, tio. E ele contava essa história toda vez que me encontrava, sempre chamando o nome de todas as sobrinhas antes de falar o meu. Isso quando não me chamava de Doriana, tirando sarro. 

Sua marca registrada era o shortinho curto e a camisa aberta e amarrada na cintura. E o topete de Elvis que cultivou por 82 anos ao custo de muito Trim e o pente que sempre guardou no bolso da calça de alfaiataria e que os netos colocaram no bolso do paletó escolhido para o dia da sua passagem. O tio estava sempre igual. Exceto hoje, quando o vi pela última vez.

Quando alguém morre, o jeito mais fácil de aliviar o sofrimento é relembrar. E quando soube que meu tio partiu, só pude agradecer por tanta alegria que ele me deu, depois de desacreditar e xingar um pouco. Só tenho histórias alegres para contar dele. Por isso ainda não acredito que ele se foi assim, de supetão, sem se despedir. Fiquei sabendo que ele lutava uma batalha perdida. Mas sempre amparado pelos seus. Isso me dá conforto e creio que ao meu pai também. Ele nunca esteve sozinho.

Minha jornada com a morte está apenas começando. Eu ainda sinto medo e não sei muito bem o que fazer, só abraçar e chorar. Não sei se vou acostumar. Mas tenho cada vez mais certeza de que toda festa que tenho vontade de fazer deve ser feita. Para estarmos juntos o máximo possível. Para ouvir as histórias do sítio. Do sapato engraxado. Da polenta na chapa com leite. Das competições de bicicleta. Da mulinha. Do algodão colhido na mão. Das idas ao cinema e à missa a pé, pela estrada de terra. Da cantoria da criançada indo para o jardim da infância. Da colheitadeira vendida. Do varrer a rua. Da falta de chuva e do preço baixo do milho. Da Ferrari. Do Santos, porque o tio era do contra. As boas e velhas perguntas sobre o trabalho e o namorado. A receita do café correto quando ele visitou a cafeteria. "Compra uma garrafa de grapa e mistura no café espresso como se faz na Itália", ele ensinou. Eu quero seguir ouvindo meus tios e meus pais. Preciso ouvir suas histórias. Para lembrar delas quando a morte me encontrar de novo. Enquanto isso, eu velo o zio Mario. Enquanto isso, espero.

Comentários

  1. Que texto lindo Mari. Agora ficam a saudade e as recordações, que por sinal, sempre foram muito boas e alegres

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