cistos

Estou prestes a tirar um cisto da cabeça. Nada grave. É um cisto sebáceo que nasceu despretensioso, como outros dois cistos que removi anos atrás. Parecem espinhas e coçam enquanto crescem. 

Um dia, a dona Ana, mãe do Re, usou seus conhecimentos de enfermeira para tentar expulsar um dos cistos do meu pescoço, mas só provocou dor. O negócio era mais embaixo, bem mais embaixo. Então, agendei a cirurgia.

Minha mãe veio ficar comigo no dia em que fui à clínica dermatológica tirar os cistos: um no pescoço e outro na axila. Mas foi tudo tão rápido e indolor que ela nem precisava ter vindo. Mas quando ouvi a palavra anestesia, gritei “manhê” e ela veio. Me lembro de eu mesma ter dirigido de volta para casa, mas não me lembro o nome da médica, só que o consultório ficava numa rua perto do Zerão. 

Lembro também de a médica ter me mostrado o tamanho dos cistos e eu, incrédula: “Como uma simples espinha podia ser tão grande?”. Deixei os cistos lá para biópsia e o resultado apontou: benigno. Era só acúmulo de gordura. Aparentemente algo que minha genética faz bem.

Muitos anos depois me preparo para tirar o terceiro cisto sebáceo do corpo que não para de acumular gordura em lugares inadequados: pescoço, axila, cabeça, barriga, braços, pernas, bochecha... 

O tal cisto deu as caras antes da pandemia e se desenvolveu muito nos dias de confinamento, chegando ao ponto de enxergá-lo de longe, enquanto penteio o cabelo em frente ao espelho. E de repente ele começou a coçar. 

Então, depois de muito procurar uma dermatologista no guia médico do convênio, marquei uma consulta com uma especialista que tinha boas avaliações no Google. Ao chegar em seu consultório, me senti de volta aos anos 1970: mobília velha, sala de espera escura e um atendimento de alguém que esqueceu de passar na fila da empatia antes de reencarnar. 

Posso até estar exagerando, mas ela me fez sentir a pessoa mais acabada do mundo, mesmo eu sabendo que só tinha ido lá para saber do cisto. 

Depois de me perguntar o que eu queria e de eu mostrar o cisto, ela me sentou numa cadeira de madeira que mais parecia o trono de um rei decadente e apertou a espinha. Sem higienizar as mãos ou colocar luvas, assim, de supetão. 

Doeu pra caramba e o troço começou a vazar um líquido. Aí que a médica resolveu limpar as mãos e colocar a luva e seguir apertando, dizendo que estava infeccionado e que iria me receitar 5 dias de antibiótico. Eu queria chorar e chutar a canela dela como uma criança birrenta.

Qual não foi minha surpresa quando ela me disse que não era cirurgiã e não saberia indicar nenhum outro médico para me ajudar a me livrar do cisto. “Olha no guia médico do seu convênio”, decretou. Ainda mais triste, porque ela verdadeiramente me deixou arrasada e com vontade de chorar, agradeci. 

Estava pronta para ir embora quando ela pergunta: “Mais alguma coisa?”. Mesmo que eu quisesse tirar mais alguma dúvida, não seria para ela que eu iria perguntar, então ela se sentiu no direito de me recomendar algumas sessões de laser para a minha rosácea - porque uma só não daria conta de resolver. E eu pensando: “Esse vermelhinho no meu rosto não me incomoda, já o cisto que você estourou está doendo pra caramba”.

Saí daquele consultório horroroso no meio da avenida, em frente à Santa Casa, com raiva, tristeza e amostras grátis de hidratantes e filtro solares. Paguei o estacionamento, entrei no carro e saí cantando pneu e chorando. “Melhor se eu tivesse ficado quieta em casa.”

Mas sempre que eu me deitava no colo da minha mãe e pedia um carinho, ela encontrava o cisto enquanto acariciava meus cabelos e fazia cara de nojo: “Vai ver isso, Mariana.” Eu dizia que não me incomodava, que era gordura, que depois eu procuraria outro médico e mais um ano se passou. 

Depois que a doutora apertou o cisto, ele nunca mais foi o mesmo. Cresceu ainda mais e começou a coçar. Se instalou bem na risca do cabelo e sempre que eu penteio eu dou de cara com ele, quase gritando: “Estou aqui”, e me jogando na cara a minha procrastinação.

Então, no começo do ano, resolvida a me livrar de mais este cisto, vasculhei o guia médico e me deparei com uma cirurgiã dermatológica jovem que atua numa clínica decente da cidade e agendei a consulta. Foram 3 meses de espera pela consulta pelo plano de saúde.

Qual não foi a minha alegria quando me senti acolhida pela jovem médica, que não só me olhou de cima a baixo, como me disse: “Se quiser, marcamos a cirurgia hoje mesmo”. Eu quase saí de lá cisto-free no mesmo dia, só não o fiz porque tinha uma importante reunião de trabalho bem na hora. 

Pois hoje é o dia da tal microcirurgia, bem tranquila, no consultório, no fim da tarde. E eu estou aqui escrevendo sobre esse livramento, confiando que será como da primeira vez: tudo certo. Dessa vez, vou sozinha, no alto dos meus 43 anos, sem mãe, nem pai, nem ninguém para dar apoio moral. Prefiro assim, no final das contas. “Você dá conta de ser adulta, Mariana”, sussurra a minha criança interior.

Essa ladainha toda sobre cistos e consultas dermatológicas me fez pensar que nunca foi sobre o cisto e a médica antipática. Ou sobre meu corpo acumular gordura em locais inusitados, o que me faz ser filha do meu pai e irmã da minha irmã. Talvez seja sobre amor. Autoestima. Respeito.

Eu fui muito afetada pela pandemia, ainda que minha vida diária não tenha mudado tanto nos 2 anos de confinamento. Ainda que, pessoalmente, não tenha contraído a doença e tenha conseguido manter meu padrão de vida naqueles anos. 

A afetação foi emocional e ainda tenho flashes daqueles momentos sozinha em frente ao bosque. E percebo que mesmo querendo, não mudei muito. Carrego os mesmos medos que eram anteriores àqueles dias sombrios. E com ou sem pandemia, eu precisava encará-los. O corona só acelerou – ou finalmente acelerou - tudo para mim, eu acho.

Engordar quase 20 quilos durante um processo de burnout tardiamente diagnosticado ou deixar crescer um cisto no meio da cabeça escancararam o quanto eu demorei para olhar para mim mesma depois que me percebi adulta. Eu sempre recorria ao familiar porque era mais fácil receber cafuné de mãe, ainda que ela sentisse nojo ao tocar no cisto.

Foi só quando um cara aleatório da empresa de investimentos me fez pensar sobre dinheiro que eu acordei do mundo da fantasia e comecei a realmente enxergar a influência do material no emocional e vice-versa. Sempre reclamando da falta de dinheiro e morando numa casa confortável, sempre reclamando do carro e viajando, sempre reclamando do salário ruim e consumindo tudo o que tinha vontade. Me faltava perspectiva e gratidão.

Daí que esse mesmo cara aleatório sumiu - como muitas outras pessoas que despejam bombas em mim e somem - e uma moça apareceu em seu lugar: vivaz, empolgada, ela me deu coragem para investir e poupar para não me preocupar tanto com o dinheiro. Deixá-lo trabalhar para mim enquanto eu trabalho por ele. E comecei a olhar para outros lugares em mim.

Foi aí que a terapia bateu de verdade, chacoalhou tudo e confundiu o que parecia certo. Foi aí que eu comecei a ver o que era meu e o que era do outro, o que era ansiedade e o que era falta de respeito, o que era saudade e o que era descaso. Foi aí que me tornei melancólica para, finalmente, entender que chorar faz parte da cura. Assim como coçar e desenvolver cistos.

Curiosamente, depois que tirei os dois primeiros cistos, vivi os anos mais intensos da minha vida: conheci muita gente diferente, aprendi com elas, fui a shows, dancei, cantei, me apaixonei, fui rejeitada, tive uma lojinha, fui passada pra trás, virei editora, dirigi um carro dentro de um avião, fiquei surda, tirei a vesícula, sapateei flamenco, fiz pães, carnes, massas, sopas, crepes e doces, muitos doces.  

Engordei, chorei, me mediquei, me demiti. Viajei com meu primo, viajei com a minha mãe, conheci Cancun, os Cliffs e comi sfogliatelle. Tive uma cafeteria, troquei de apartamento, de carro, de amigos, de cortes de cabelo. Voltei a escrever e a torcer pro Palmeiras, virei sócia de agência e me tornei família para alguns, mesmo vivendo sozinha há uns bons anos.

Vi meus pais encaixotarem 40 anos de casamento e se mudarem para a praia. Vi a vó finalmente assumir os cabelos brancos que os 90 anos trouxeram. Vi a irmã concluir o doutorado e outras tantas conquistas pessoais. Chorei a partida do vô e do tio, abracei os amigos nos momentos de perda, mas também assisti a muitos nascimentos.

E, então, um novo cisto foi crescendo enquanto tudo isso acontecia, como se o corpo estivesse acumulando todas essas experiências debaixo de um pedaço de pele. E ele coçou, anunciando que era hora de deixar tudo pra lá, de novo. 

Talvez eu tenha viajado com essa história de cisto-procrastinação-amor-próprio-autoconhecimento-redenção-futuro. Talvez seja só sobre dissipar o acúmulo de gordura num local inusitado do corpo a um modesto valor de 650 reais porque o plano de saúde não paga nem o custo dos materiais. Não sei bem. Talvez eu descubra depois que sair o resultado de mais essa biópsia e conte essa história num outro texto, enquanto um novo cisto nasce em um outro local inusitado do meu corpo. 

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