capa colorida

Minha vó chora quase todo dia. Devem ser os quase 92 anos.

Seu corpo dói o tempo todo. Sua mente distorce. Ela reclama, amaldiçoa. Depois esquece tudo e dança.

Ela chama a atenção dizendo que não tem fome, que está com frio, com dor, que não quer mais viver, que não sabe o que está fazendo aqui, que a filha a abandonou, que reza para Deus a levar embora enquanto dorme. 

Nós escutamos tudo isso sempre que estamos juntos. E doemos junto. Meus pais doem diariamente porque há dois anos se responsabilizam pelo cuidado com a vó. E há dois anos escutam a mesma ladainha, que ela insiste que não faz. "Velho perde a validade", ela esbraveja.

A última cena aconteceu enquanto eu estava lá com eles, pelo aniversário da minha mãe. Fiquei uma semana. Uma única semana. E sai de lá pesada como se estivesse carregando uma montanha nas costas. Vim embora pensando nos meus pais, em especial, na minha mãe. 

Ela se dedica 24 horas à vó e nos poucos momentos de respiro que se permite, está conectada com ela pelo celular. Sempre perguntando, sempre preocupada que algo dê errado, ainda que a vó sempre seja bem cuidada por todo mundo. Todo mundo adora essa vó. Mas é a vó que não se adora mais.

Fiquei pensando sobre isso: se a gente não se adora, fica difícil viver. Ou a gente apronta e reclama para chamar a atenção do outro ou a gente se anula para que o outro não nos esqueça. Devem existir outras inúmeras razões, mas só consegui pensar nessas duas agora. Mas também é possível aprender a se amar a partir do amor que se recebe do outro. Essa história de se bastar sozinho é cruel demais.

Muito se fala na terapia em quebrar padrões, romper crenças familiares, fazer diferente. E muitas vezes a gente precisa ir muito longe na própria história para descobrir quais são essas crenças e padrões. 

Na terapia há quase 15 anos entre idas e vindas, aprendi alguns padrões, consegui ressignificar algumas crenças, mas ainda me pego repetindo reações infantis que estão gravadas no meu corpo como tatuagem. Muitas delas aprendidas na infância e juventude, enquanto convivia com a minha família. 

Esse período da minha vida passei sempre junto delas, da mãe e da vó. Observando e aprendendo, ora querendo fazer igual, ora diferente. Ora com medo de decepcionar, ora com raiva por não corresponder ao que elas queriam que eu fosse. 

Quantas vezes tentei ser perfeita e falhei miseravelmente, achando que era impossível errar se eu simplesmente seguisse todas as regras. Quem criou tantas regras? E quando me vi sozinha, com a liberdade de fazer do meu jeito, me perdi. E fiz exatamente como elas faziam. Mas também não deu certo porque somos únicas.

Gerações que vieram antes abriram os caminhos para mim e minha vida foi muito mais fácil. Com outros tipos de dor, é claro, mas muito mais oportunidades. E aproveitei quase todas elas sempre que me senti capaz. E elas sempre estiveram do meu lado, prevendo quando tomaria o tombo e cuidando das feridas, quando eu não escutava o conselho. Reconhecer isso aos quase 44 anos dá um alívio: eu poderia seguir culpando a criação pelas minhas escolhas, mas, na verdade, eu sempre pude escolher. Elas não.

Eu disse para a minha mãe que ela precisa se colocar em primeiro lugar em algum momento da vida, não acho que seja tarde demais. Ela tem muita vida para viver. Ao mesmo tempo que acompanha, dia após dia, a partida da própria mãe. Ainda não sei o que é experienciar isso e espero que não passe por isso tão cedo, mas é bem provável que passarei no futuro.

Se eu sempre digo na terapia que me sinto em constante modo de espera, como se vivesse estagnada, depois de acompanhar as mulheres da minha vida nessa última semana eu reconheço que minha espera é uma desculpa, porque eu vivo sim. Talvez não a vida de comercial de margarina das redes sociais, mas uma vida repleta de significado. E mais, significado para mim. E isso precisa bastar.

Se minha mãe reconhecer que sua vida tem significado, apesar de às vezes ela parecer triste, a montanha se transformará numa linda capa colorida que me protegerá da chuva. Se minha vó perceber, então, eu me deixo molhar inteira. Mas aí é transferir a responsabilidade para o outro de novo e essa lição eu aprendi.

À minha vó, eu desejo que se livre de todo o frio e toda a dor. Das memórias tristes e do choro solitário. Da vontade de partir. Desejo paz, enfim.

À minha mãe, desejo perdão. Amor próprio. Alegria. E muita, muita vida e coragem para escancarar a caixa de sonhos e deixá-los esparramados pelo caminho, para ir realizando um de cada vez até o corpo cansar.


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