Picasso: a saga

Em 2023, trabalhei para caramba para criar uma certa estabilidade financeira e conseguir realizar algumas vontades, como trocar de colchão, de sofá e de carro. Então, em 2024, me senti pronta para dar um passo à frente e comprei, à vista, um novo velho carro automático. Qual não foi a minha surpresa ao descobrir que o carro simplesmente não queria ser meu. 
Depois de arriar a bateria no segundo dia de uso - justamente quando estava saindo da cafeteria com as amigas após comemorar a compra do carro -, precisei levá-lo para a concessionária para um recall, senão a documentação não ficaria pronta. Eu pensava: quem vende um carro sem antes responder ao recall? Pelo visto, a loja do "vendedor solícito" que dá desconto e sabe muito bem como enganar mulheres desavisadas.
Sim, eu sou uma mulher desavisada e que não entende nada de carros, mesmo tendo sido editora de um caderno de veículos por alguns anos e ter feito inúmeros testes de lançamentos de muitas montadoras dentro e fora do país. Isso não quer dizer nada. No mínimo, quer dizer que escrevo bem. E que os lançamentos parecem incríveis até que você os coloque na rua todo dia.
Enfim, depois da bateria arriada e do recall, viajei para a cidade vizinha para almoçar com os primos num domingo e decidi abastecer o carro com álcool pela primeira vez. Meu primo havia me alertado que quando eu fizesse essa primeira troca da gasolina para o álcool, eu deveria andar uns bons quilômetros para o carro reconhecer o novo combustível. Pronto, eu voltaria de Rolândia para Londrina e tudo estaria resolvido. Qual não foi a surpresa quando o carro não pegou na manhã seguinte. Parecia até praga!
Como havia sido bem atendida na concessionária durante o recall, resolvi levar o carro lá para uma revisão, afinal, quem mais poderia saber tudo sobre este modelo do que a própria concessionária da marca? Diversas peças trocadas, testes e depois de uma semana na oficina, pego o carro numa sexta à noite e parto para o bar, para comemorar o aniversário do amigo, feliz da vida que enfim teria um carro que dava partida de primeira. Na hora de ir embora, já de madrugada, virei a chave e nada. Demorou uns bons 10 minutos para o carro responder e eu conseguir chegar em casa morrendo de medo de ficar parada no meio da avenida Leste-Oeste às duas da madrugada. A cada acelerada eu sentia como se meu próprio corpo fizesse força para carregar o carro para casa.
Na segunda-feira, acionei a concessionária e fui ignorada solenemente pelo mesmo atendente que havia me tratado superbem no recall. E já tinha gastado a primeira bolada para trocar a tal sonda lambda. Decidi, então, acionar a garantia da loja do cara "solícito" e fui até a oficina parceira deles. Parecia um desmanche e pensei: não deixo meu carro aqui por nada. E segui tentando encontrar um mecânico de confiança que fizesse meu novo velho carro funcionar no álcool.
Numa das visitas aos primos em Rolândia, comentei com o primo que o carro seguia com problema na partida. Ele sugeriu que eu deixasse o carro lá para ele levar no mecânico de sua confiança, mas eu queria vir embora para casa. Tarde da noite, ao tentar ligar o carro para voltar para Londrina, surpresa: não pegava de jeito nenhum. 
Dormi por lá e pela manhã, o primo levou o carro na oficina. O mecânico passou o scanner e, teoricamente, conseguiu ajustar o combustível, me cobrando apenas cinquentão. Achei que tinha tirado a sorte grande e voltei para casa feliz de novo.
Mas...sempre que eu tentava dar partida no carro, ele falhava. E eu chorava de raiva. 
Pedi referências de oficinas e consegui o contato do Sr. Takashi, amigo e mecânico de confiança da professora. Mandei mensagem e ele me ligou. Atendi quase chorando - nessas altura do campeonato eu chorava sem parar por conta do novo velho carro  - e expliquei o que estava acontecendo. Ele me acalmou dizendo que o que tinha acontecido comigo na concessionária era machismo, que eles subestimavam mulheres mesmo, e que iria resolver o problema, só precisava de tempo. Resolvi esperar, mas ansiosa, porque tinha uma viagem em vista e ele tinha dito para eu não colocar o carro na estrada.
Como a data da viagem se aproximava e o Sr. Takashi seguia ocupado, decidi testar a oficina de confiança da comadre. O mecânico era amigo do cunhado dela,  então eu senti confiança. Deixei o carro lá, ele trocou bomba de combustível, fez uns ajustes e consegui viajar. Estava feliz de novo. Enquanto isso, as parcelas caíam no cartão de crédito...
Quando o Sr. Takashi finalmente se liberou, precisei contar a ele que não consegui esperar e já estava na estrada, mas que levaria o carro até ele quando voltasse. Ele se ofendeu e nunca mais me respondeu...
Voltei de viagem e o carro seguia sem dar partida direito, então simplesmente desisti e decidi usar apenas gasolina. E ai ele voou. Até que...
Depois da viagem de fim de ano, em que os botões do vidro elétrico quebraram: primeiro do lado do motorista e depois do passageiro, eu entendi que esse carro nunca quis ser meu. Fui resiliente mais uma vez e consertei os vidros.
Aí foi a vez da chave: como era muito usada, o alarme não funcionava mais e  eu já estava fechando o carro na mão, até ele começar a disparar do nada, porque os sensores também decidiram descolar do vidro. Esse carro está desmontando na minha frente, pensei. Mais uma bolada para ajustar tudo. Agora vai!
Então, em janeiro, cinco meses depois da compra, fui viajar de novo para comemorar o aniversário do primo. Estava indo tudo bem até que, de repente, o painel começa a apitar no centro de São Paulo, pertinho da Praça da Sé, sexta-feira, cinco da tarde. Desesperei. 
Encostei no primeiro posto de gasolina que encontrei e descobri que toda a água do radiador tinha se esgotado. Mais uma bolada para resolver. Na volta para casa, tudo tranquilo, até eu fazer uma parada estratégica para esticar as pernas e ver a maria fumaça do posto apitar. O que era para ser um alívio no trajeto de quase dez horas, se transformou num pesadelo. Estava eu lá, tranquilona, a apenas 300  quilômetros de casa, quando o painel começa a apitar de novo: service, service, service...
Meu coração disparou e desesperei de novo. Os frentistas não faziam ideia do que estava acontecendo porque água e óleo estavam normais. Aí, um senhor que viu meu desespero explicou que era só um aviso normal de revisão. Me acalmei e voltei para a estrada pensando que teria que visitar a oficina mais uma vez e gastar mais uma bolada dividida em sete vezes sem juros.
Revisão feita, sistema de arrefecimento trocado, a paz reinou novamente e fiz uma nova viagem, dessa vez a trabalho, ao lado da amiga, da afilhada e do namorado dela, pouco mais de um mês depois. 
A ida para São Paulo foi divertida, incluindo o fato de eu ter errado o caminho que faço há 22 anos e ido parar em Bauru. O estresse foi compensado por um milkshake da Cacau Show e um arais do Carlinhos. Estava tudo bem.
No dia seguinte à chegada na capital, levantamos cedo e rumamos a Suzano, onde conheceríamos nosso mais novo cliente: o sonho de escrever um livro juntas estava finalmente se realizando. 
Pegamos uma linda estrada desconhecida e chegamos ao destino na hora combinada. A volta teve um perrenguinho básico de quem anda pouco por São Paulo: pegamos a ponte errada e fomos parar em Osasco antes de chegar no Butantã. Não me pergunte como. Mas o carrinho respondeu bem a tudo.
À noite, combinamos de levar a filha da comadre no mercado e aproveitar para comprar guloseimas para a janta. Um caminho de poucos quilômetros até o bairro vizinho. De repente, quase chegando no mercado, o painel grita novamente: para logo senão eu vou ferver! Meu instinto me pediu para levar o carro até o estacionamento do mercado: se ele fervesse, pelo menos ficaria guardado em segurança. 
Estacionei, desliguei o carro e a fumaceira começou. Todo mundo que estava comigo se assustou. Eu nem consegui chorar tamanho o desespero. Minha vontade era abandonar aquele carro lá sem olhar para trás, Mas adultos precisam resolver seus BOs.
A comadre, mais experiente, me ajudou a encontrar uma oficina que ficava do ladinho do mercado. O plano era transferir o carro para lá pela manhã. Compras em mãos, lotamos o Uber e voltamos para casa. Quem disse que eu dormiria aquela noite...
No dia seguinte, o carro ligou e quando fui tirá-lo do estacionamento, meti a porta do motorista na pilastra de tanto nervoso e falta de atenção. Teria mais um problema para lidar. Mais uma bolada para gastar...
Mas pensaria nisso depois. Levamos o carro à oficina e partimos passear com a afilhada e o namorado dela por São Paulo. Visitamos o cemitério, agradecemos  à "santa" pela graça do vestibular alcançado, comemos hambúrguer no Sujinho, fomos à Galeria do Rock, tomamos café no Sesc e rumamos de volta para o Bonfiglioli buscar o carro. Fusível da ventoinha trocado, água desmineralizada no porta-malas, partiu Pinheiros!
Que nada: a batida na porta emperrou o vidro, que não subia mais. Tive que pedir ao mecânico o favor de consertar. E em poucos minutos ele desmontou a porta, desamassou a batida e fez a máquina do vidro funcionar de novo, enquanto contava que era torcedor do São Paulo e que o dono da oficina era santista. Contou também que começou a trabalhar lá há mais de 20 anos, tornando-se funcionário de confiança do dono. Duas jornalistas tentando consertar um carro quebrado transformam qualquer contratempo em boas histórias...
Passeamos o fim de semana todo e no domingo à tarde, decidimos testar o carro na Marginal Tietê antes de pegar estrada para Londrina. Eu estava tão apreensiva que qualquer barulho ou cheiro virava gatilho. Teve uma hora que comecei a suar frio achando que o carro morreria em plena marginal, mas era apenas o barulho de uma moto com escapamento furado. A risada correu solta no carro, mas por dentro eu estava uma pilha. E se acontecesse algo com eles?
O carro respondeu bem na estrada e chegamos em segurança em Londrina. A paz voltaria a reinar por algum tempo. Pelo menos até eu terminar de pagar as prestações da última visita. Foi o que pensei, mas...
Do nada, uma mancha debaixo do carro. Deve ser água do ar condicionado, pensei. No dia seguinte, a mancha ainda estava lá. No outro dia, manchou do outro lado. Na outra semana, a mancha aumentou. O gatilho estava disparado. Partiu oficina. Mas não há de ser nada, ele trocou tudo da última vez, pensei.
Mais uma bolada. Em sete vezes sem juros. A parcela que acabaria em setembro se estendeu a dezembro. E renasceu a vontade de gritar e chorar e jogar o carro no lago. 
Por que esse carro não quer ser meu? Será que compensa ir ajustando tudo para ele ficar uma maravilha? Brinquei com a moça da oficina: não quero ver a sua cara por um bom tempo. Ao que ela respondeu: acho melhor você passar esse carro para frente. E me deu o telefone de um vendedor de carros amigo dela.
Saí da oficina pela última vez, determinada a resolver essa ladainha que me tira o sono há nove meses. Depois de nove meses, pari uma dívida de mais de R$ 10 mil e ganhei mais uns fios brancos no cabelo. 
Então, enfiei meu orgulho e todas as minhas convicções de mulher adulta desavisada no bolso, chamei meu pai para resolver e agora me despeço do Picasso. Pica para os mais íntimos - aqueles que o viram ferver em plena Sampa.
Minha barriga dói, minha cabeça não para de pensar "e se", minhas mãos não param de mexer de nervoso e as lágrimas caem sempre que eu preciso dar partida no novo velho carro. Porque o óleo continua vazando, mesmo depois da última bolada  paga ao mecânico, e a mancha só cresce, poluindo a garagem do meu prédio e a minha autoconfiança. 
Esse conto longo e maluco sobre o dia em que quis comprar um carro novo não é sobre o Picasso. Não é sobre a bolada que gastei e ainda vou pagar por uns bons meses. Não é sobre a desonestidade do vendedor "solícito" em me passar um carro batido e "machucado" por dentro, que precisava de cura antes de se entregar a um outro alguém. Não é sobre a concessionária que tem um pós-venda péssimo. Ou sobre o mecânico do bairro que tem a oficina cheia de serviço, mas que só trocou peças, sem descobrir, de verdade, qual é o problema do novo velho carro.
Esse conto longo e maluco é sobre como a ansiedade que consome meus pensamentos se transforma numa ânsia de resolver tudo rápido a qualquer custo, sem nem pensar direito. Eu penso tanto, mas na hora de executar, muitas vezes meto os pés pelas mãos. 
Quase nunca consigo concretizar meu plano inicial. Pelo medo de não dar conta. Aí, o problema vem e eu percebo que teria sido infinitamente mais fácil ter dado conta da vontade inicial do que do problema que fica quando a gente se diminui para caber na vida. Não dá para viver com medo do agora, pensando como será o futuro. Porque a conta não espera. E aí não tem para onde fugir.
Melhor mesmo é se tratar bem, acreditar nas possibilidades, mesmo que difíceis. Porque é muito mais legal apostar em algo grande e colher resultados felizes, do que viver recolhendo migalhas...








Comentários

  1. Kkk Mari, vc se deu conta que agora vc entende muito mais de mecânica de carro?? Esses nomes todos de peças que vc citou, não conhecia quase nenhum! Próximo carro vc vai estar bem entendida !! E a vida é assim, a gente aprende errando mesmo… e tudo bem né! ❤️

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