reflexões
Ontem foi um dia tão esquisito. Tanta coisa diferente
aconteceu que eu custei a dormir ainda que meu corpo estivesse cansado. Eu
apelei para mais um capítulo do dorama da vez, mas fiquei pensando mais nos
dramas cotidianos. Tem tanta coisa acontecendo na vida das pessoas ao nosso
redor que a gente não faz a menor ideia. Numa conversa sobre pauta, uma amiga
acabou desabafando toda a dificuldade que enfrenta diariamente desde que se
tornou esposa e mãe. De fora, me parece que ela tem uma vida bastante
confortável e que está feliz com o rumo das coisas, mas por dentro não é bem
assim. Eu gostaria de ouvi-la, de saber o que ela tem feito, como tem feito,
onde encontra prazer para aplacar a tristeza. Porque por mais que nossas vidas
sejam completamente diferentes, o fato de sermos mulheres nos une. Tudo para a
mulher é mais difícil. Simplesmente porque a gente sente. E pensa sobre esse
sentimento. Coloca na balança prós e contras antes de decidir. Me parece que
para os homens é mais fácil. Eles decidem e colocam em prática. Não sei se com
todos é assim, mas acho que faz parte da função de provedor resolver primeiro e
pensar depois. Para as mulheres, a igualdade está muito longe. Ainda falta
sororidade. Então eu me pego pensando na minha condição de mulher solteira de
38 anos, sem filhos, que nunca foi casada, sequer namorou, sempre trabalhou
fora, chegou a liderar equipes, teve crises feias de ansiedade, buscou nova
profissão para poder aplacar o sofrimento que a antiga lhe causava, gastou o
dinheiro de 14 anos de trabalho em viagens, vai ao restaurante ou ao cinema
sempre que quer e recorre ao pai – o provedor – quando alguma coisa dá errado.
Me fica a sensação de fracasso, ainda que eu saiba que sou um ser humano
genuinamente bom para a humanidade. Que estou fazendo o que tenho que fazer
neste momento e que o ontem já foi e o amanhã, quem sabe. Eu, que sempre achei
que ser mãe de família é a melhor coisa que pode acontecer na vida de uma
mulher, descubro pelo depoimento sincero da amiga que é muito mais difícil que
tudo o que eu possa viver como mulher solteira dona das próprias decisões. Ela
é responsável por duas vidas. Eu não posso imaginar o que é isso. E ela é
responsável também pela própria vida. Como deve ser fazer escolhas quando
outros vêm em primeiro lugar? Eu sempre estou em primeiro lugar na minha vida.
Parece egoísta, mas é a simples realidade de que só tenho que decidir por mim.
Meus pais decidem por eles ainda, que bom. E sempre que quis intervir, me dei
mal, então entendi que nesse momento as escolhas são egoístas sim. No dorama,
uma mãe recém-divorciada tenta retornar ao mercado de trabalho depois de uma
pausa de sete anos para criar a filha. Ela não consegue recolocação em sua área
de atuação – marketing – porque o jeito de fazer as coisas mudou muito desde
que ela se afastou. Associado ao fato da sociedade coreana ser muito machista e
preconceituosa, ela decide abandonar toda sua qualificação para ser uma “faz
tudo” numa pequena editora de livros. Em uma das entrevistas de emprego em uma
agência de publicidade, ela diz que uma de suas qualidades está no fato dela
ter sido esposa e mãe e tudo o que aprendeu nessa rotina poderia ajudar no novo
emprego. A recrutadora deu risada na cara dela, uma vez que ela mesma tinha
aberto mão de ter uma família para construir a carreira. Ela não admitia que a
mocinha tentasse ficar com o cargo dela tendo dado uma pausa na carreira. “Você
sabe o que eu deixei de fazer para chegar aqui?”, ela questiona. E a mocinha da
história entende que nunca mais recomeçaria de onde parou. Não importava quão
boa ela fosse. Seria preciso fazer diferente. E sem medo, ela aceita um cargo
inferior para reaprender a trabalhar neste mundo moderno. E vai mostrando suas
qualidades no desenrolar da história. Eu acho que não tem certo ou errado: tem
pessoas tentando sobreviver às contas e às vontades pessoais dia sim dia não. E
alguns dias são melhores que outros. Mas para as mulheres ainda acho que o peso
é maior. De estar sempre bonita e contente enquanto trabalha fora, cuida da
casa e da família. A amiga jornalista que iniciou a conversa citou casos
absurdos da empresa onde trabalhava em que colegas que voltaram da licença
maternidade foram demitidas e homens que se machucaram jogando futebol voltavam
da licença e ainda eram promovidos. Que as mães demitidas foram substituídas
por homens. E eu me pergunto: onde foi parar o respeito, se é que algum dia ele
existiu para as mulheres. Eu me volto para a minha avó, que a vida toda se
dedicou ao marido e aos filhos, que nunca conseguiu estudar porque precisou ser
babá dos sobrinhos aos dez anos de idade. Ela mal sabe escrever e tem vergonha
das orações que nos dá de presente porque acha que está tudo errado. Eu sinto
um orgulho tremendo porque só consigo imaginar como deve ter sido para ela
dividir os vestidos e sapatos com a irmã mais nova porque não dava para comprar
para todo mundo. Como deve ter sido ter que economizar do dinheiro que o marido
dava para a feira para comprar presentes para os netos ou para reformar a casa
ou comprar um utensílio de cozinha. Como deve ter sido querer visitar os irmãos
e ter que ficar em casa porque o marido não queria sair e nem deixava ela sair
sozinha. Como deve ter sido passar aquela véspera de Natal nos fundos do
quintal sem poder confraternizar com a família que morava na casa da frente
porque o marido não deixou. Até hoje minha avó não conhece a sensação de
prazer: ela ainda usa roupas velhas dos outros e guarda as novas na gaveta. Ela
ainda deixa o genro se servir primeiro “porque ele é o homem da casa” e ainda
cuida do meu tio como se ele fosse uma criança que precisa de proteção. Minha
mãe ela criou para ser dona de casa e fez um ótimo trabalho. Ela administra uma
casa como ninguém. Mas vejo nos seus olhos que se ela pudesse voltar no tempo,
mudaria algumas coisas. Talvez ela tenha tido medo de ser diferente da mãe
dela. E as oportunidades eram escassas quando ela era mais jovem. Eu sou muito
diferente das duas e ainda tenho medo. Eu só queria abraçar a minha amiga e
dizer olhando nos olhos dela que se ela está incomodada já é meio caminho
andado para se reencontrar e ser mais feliz nas condições que a vida lhe deu.
Eu sei que é clichê dizer para focar no positivo, mas é que, ao meu olhar, ela
só tem qualidades. Eu queria dizer para a minha vó que ela poderia se dar ao
luxo de curtir a vida, mesmo que aos 86 anos. Diria para a minha mãe que ela
ainda tem muito tempo pela frente para fazer as coisas que a deixam feliz, sem
culpa alguma. Só possibilidades. Eu diria para amiga jornalista que tenha força
porque apesar do tema da matéria ser positivo – um serviço de cadastro de
currículos de mães que querem voltar ao mercado de trabalho –, vai ser dolorido
escrevê-la. Eu diria para mim mesma seguir em frente mantendo a capacidade de
sonhar com o que quer seja, mesmo quando a realidade bater na porta.
Ual, Mariana! Muito legal a crônica da realidade.
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